quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Antologia "Pensamentos Pictóricos" (autoral)

Índice

Poesia
1- À Manoel de Barrs
2- Agenda
3- Almoço cuiabano 
4 - Beso 
5 - Carnes incompreendidas
6- Cemitério Cristóvão Colombo (Havana, 2010)
7 - Com ela
8- Derramamento de petróleo no Golfo do México (2010)
9- Desconhecidos ao meio-fio
10- Enchentes no RJ (2011, mais de 900 mortos)
11- Encontro entre sóis
12- Eurídice
13- Fragmentos
14- Futuro em Dubai
15- Goiás Velho de Cora Coralina
16- Grande circular
17- Máquina de lavar
18- Metrô Saint-Michel
19- Morango
20- Oração à Bahia
21- Oração à Íris
22- Prantos urbanos
23- Quiromancia
24- Rosto e lágrimas
25- Simão
26- Tato sobre vida 
27- Tempo, terra e silêncio
28- Ventres especulares
29- Vocação ao cotidiano
30- Vocação de amar
31- Sentimental
32- Insaciedade da carne

Prosa poética
1- Distância da felicidade
2- Sonho
3- Tempo e perdão
4- Coletar estrelas
5- Fim-de-ano presente

Contos
1-Horácio e Marieta
2- Otacílio

Poesia

1- À Manoel de Barrs
Oração ao poeta mato-grossense
Cansei de falar inglês, francês, espanhol
Quero – como Manoel de Barros -
Aprender a falar gadês, gramês, formiguês e todas essas línguas da espera de comungar divinamente com o tempo.
Idiomas do fresco renovar de estar vivo, partilhar a serenidade com os seres que não têm pressa – abençoadas espécies sábias e pacientes.

Da solidão das colheres
Se ficasse sozinha por duzentos anos,
a colher se transformaria em beija-flor,
se fosse de sobremesa,
no caso da de chá, de café ou de açúcar,
ainda não se descobriram os efeitos da solidão.

2- Agenda
Cronometra-se a vida com tal precisão
que na agenda já não há tempo de
ser triste
hoje, é-se triste, sem saber,
nem permissão se tem
para ser triste
-
Se alguma coisa se perdeu ao transpassar
a agenda, entre os anos,
foi a consciência da tristeza
e, com isso,
a verdadeira possibilidade de ser feliz.


3- Almoço cuiabano 
Em domingos de feriado,
em casa de minha vó,
havia almoço e peixe de rio,
salobro, à moda cuiabana,
avesso a crianças -
pintado, curimbatá, dourado, pacu.
-
ao resmungo do velho,
vovó tirava a bandeja do forno,
e vinha escamado, fumegante,
atochado, costurado,
transbordando farofa e gordura.
-
suave e tenro do assar úmido,
despertava o faro dos primos,
dos filhos, dos convivas, dos vizinhos,
dos passantes embaixo do bloco.
Tudo perante o olhar de basilisco.
-
em casa de minha vó,
a anatomia do peixe e a ordem do serviço
seguiam irrevocável hierarquia.
Olhos, cabeça, postas frontais,
postas dorsais, costelas, rabo,
a porção do peixe correspondia à escala familiar.
-
O rito, a liturgia, a palavra
tornavam-se macabros aos poucos.
Genitor do prazer, meu avô
humilhava os gestos,
criticava os prazeres,
retorquia as filhas,
acadelava os genros, e
nós,
calados, pequenos, vazios, apátridas -
torcíamos, com gosto de gordura fria à boca,
para que tocassem a campainha.

4- Beso 
Beijo-beijo
horizonte desejo
queixo olhos
e tudo entre nós são línguas
pois que
me boca, me caia, me seja
até encontrar seu mundo
só me faço dele beijo

5- Carnes incompreendidas
a carne que porto
é feita de tempo
e o ofício do corpo
é reconciliar-se com a memória
refazer-se na presente vida
através das dores dos homens
-
há muito atrocidade
embaixo de minhas unhas
para eu ser parte contigo na
condição humana,
na incompreensão do sofrimento
-
cumpre acertarmos e errarmos
e depois ver que não existem
acertos e erros
só existe o que, quando despidos,
olhamos ao espelho
só existe a fragilidade de existir
sair fora de si
para poder encontrar-se renovado
só existe essa ponte
unindo a carne
capaz de levar a tudo


6- Cemitério Cristóvão Colombo (Havana, 2010)
I - Dos nomes e corpos estirados:
-
Tantos nomes, tantos corpos,
e nomes de corpos
em letras refazendo as carnes
para admiração dos passantes.
-
cada qual recria nomes alheios
- sua genealogia própia de mortos
pragueja, implora, perdoa, e
principalmente vigia esvaecidos nomes.
_________________________
II - Esquecimento e reverência
No cemitério tudo é carne - insubmissão à vida
inspiram a inveja do eterno
à lápide, títulos e distinções
em desejo de reverência ao que se vai ser.
-
A morte é espalhafatosa, retumbante, inevitável e
a posteridade pretende -seduz-
O futuro é esquecimento.

7- Com ela
As salivas da manhã
encharcam os panos, transbordantes,
os desejos, caudalosos.

Do meu corpo estendo seu braço,
que me envolvem,
devolvendo-me a própria pele.

Reconstituo-me com a memória dos seus olhos,
por neles só haver o que sou.

8- Derramamento de petróleo no Golfo do México (2010)
A negra fímbria
serpenteia viscosa e oleosa nas vagas salgadas dos atlânticos.
Franjas escuras e a retalhada borda oceânica.
Necrosados seres.
Olhos fixos - olho de peixe -
- fixos -
Olhos entumecidos - olho de deuses -
- fixos -
Vitrais góticos em direção ao firmamento
e ao nigérrimo fundo de abissal petróleo.

9- Desconhecidos ao meio-fio
Sentado no meio-fio,
que não passa de um nome,
a unir desconhecidos, pelo pé -
um gosta de maniçoba,
um lê deitado no carpete,
um sente coceira no olho esquerdo,
o para-brisas deformou-lhes as faces.

10- Enchentes no RJ (2011, mais de 900 mortos)
Março chega e passa
e as águas transbordantes deixaram-me
paredes invisíveis -

as memórias, afogadas, deslizadas,

submersas em terra e pedras
enlameadas cadeiras assoalho narizes
acumuladas pilhas cimento madeira carne

a vida feita em água reaparece aos gritos na rua

segue tímida ao tato frágil


11- Encontro entre sóis
Deita-te o corpo sobre meu corpo
acolho teus olhos com meus olhos
nessa maré infinita de cabelos e ternura

pensamentos transbordam da cama
existimos somente em forma de lábios e saliva
tal um sonho sobre outro sonho, observáveis, unidos e ao mesmo tempo distantes -
é o amor - um sol que nasce sobre outro sol.

12- Eurídice
Escorro minhas mãos,
cujas veias, nodosos calibres,
envolvem sangue,
volúpia e apetite.
Por todo, percorro,
seu corpo retorcido,
experimentado na leveza dolorida
de reentrar-se,
numa espécie de descriação divina
pelo prazer.

13- Fragmentos
Retalhado pelo tempo,
Entrego-me a estranhos reconhecidos
Em aeroportos, em conversas noturnas,
em bons dias rotineiros ao sonolento vigia

Daí o instante que só sei instante
que procria muda dilacera
revira-me os dedos e a laringe, projetando ao futuro as mentiras vivas contadas no passado

Se o mundo juntasse calmamente os fragmentos de minha vida


finalmente estaria completo

14- Futuro em Dubai
Perfurada por uma adaga marítima -
Dubai verte luzes a todos lados.
Inapagáveis luzes.
Transcriam a noite aparentemente deserta
em cintilantes desencontros.
O lar sublimou-se e, aéreo, é ponto no mapa.
Vive o chamado das mesquitas - lenta e ritmada
genuflexão.
Os dias, assim entrecortados, recebem o contraponto das buzinas,
conformando sinfonia urbana e premonitória.


15- Goiás Velho de Cora Coralina
A sulcada moldura da janela
é talhada pelo passado,
que atravessa os poros da madeira.
Assoviam as águas do Rio Vermelho.
Assovia o canto de Aninha,
em direção à bica da Casa Velha,
que despejou ouro, sangue e doces –
e renasceu em
lembranças líquidas,
útero fecundo de letras.

16- Grande circular
Voltava a casa com o habitual cansaço
da marcha do dia
da fumaça do ônibus
do resfolego dos corpos
e tudo o que queria era seguir e fechar os olhos.

No trajeto, a felicidade plena

voltava sem horas
desejasse que o ônibus seguisse,
adiante, ao longe, em direção a pálpebras,
rumando ao amanhã, sem que fosse necessário descer,
sem que fosse necessária a parada,
somente percorria os caminhos círculos.

Viu os passageiros a subir e descer,
observou o rapaz magro, a moça bonita e o velho doente e
percebeu como eles poderiam ser infinitamente diferentes
dentro da mesma palavra.

17- Máquina de lavar
Sabão e detergente
Máquina de lavar
          [roupa, carro, metrô
liquidificador

Mas quem lava a máquina de lavar
é a máquina de lavar da máquina de lavar da máquina de lavar
e o que resta para eu fazer?

sem sono sem ânsia de sujeira

sem um copo sujo
[a máquina lavou meus dentes

18- Metrô Saint-Michel
Em ondas, o metrô
marulha as pálpebras
embala o sono divino - trilhos mórficos -
nas mansas vagas
misturam-se aos sonhos
passantes
cujos olhos mesclam e apressam
combinações infinitas de masculino e feminino
carimbam as mentes dos
passantes
oníricos e musicais rostos.

19- Morango
Linda doce calda de chocolate
nozes meiga-meiga
malucamente desamarra-me
despe-me em sorvete
aos seus lábios
aos seus lados
sou morango e sorrisos

20- Oração à Bahia
A Bahia é onde moleque voa,
onde o Brasil começa e a África recomeça
onde quem fala o que não deve já escuta o que precisa
Berço universo de Caetano, de Amado, de Pastinha, de Raul, de Moraes - 
do be-a-bá do ser brasileiro, do ser samba e do estar verde e viver amarelo
Triste Bahia, que a morte prevista para esse Carnaval
seja o redespertar de um Carnaval negro, justo e livre
Oxalá a purgação homicida do presente regenere a nossa pele, feita de feijão, banana e frutos do mar.  Saravá! 

21- Oração à Íris
Dos olhos de deuses saíste para vida terrena, em que, cheia de carne, traz alegrias aos familiares.

Da casa é parte indiscutível, e o tempo endossa sua vontade.
Se lates, afastam-se os maus espíritos. És o gênio ébrio que nos traz o elixir da vida em forma de brincadeiras e movimentos.

És a vigília da felicidade, ao lembrar-me com olhar indefeso a ainda mais frágil condição humana.

22- Prantos urbanos
Abro o guarda-chuva
Para que se desfaçam água, cinzento e nuvens
E o plástico negro e as ligas metálicas protejam da raiva pluvial e do estar-vivo.
Mas, apaga-me o cigarro
Mancha-me os sapatos
Salpica-me o paletó
E a morte escapa, líquida, por entre a boca-de-lobo:
suga, suga, suga lacrimosos detritos.

23- Quiromancia
Desenovelo-te os punhos,
desembaraçando-te o trançado dos dedos
- nódulos empedrados de tempo.
Descubro-te as mãos rígidas e frágeis,
entreabertas de traços femininos
descontínuos como a tessitura do infinito.
Eloquentes tal a voz da empunhadura
tuas lágrimas - linhas da palma
reclamam a presteza das horas.
Digais, mãos, só haver o gozo do presente
na ilusão tracejada do futuro.

24- Rosto e lágrimas
Suicidas
Lágrimas pretas recortam a sua face
em um retalho de bochecha vê-se o inteiro de uma dor
Borram-lhe os olhos
e a moldura negra
que recobria os oceânicos verdes
desfaz-se, fluida,
atira-se ao chão
e, lenta,
conforma imagens de íntimo sofrimento

25- Simão
O feirante Simão
Chega, salta da carreta
Todos os dias
Monta os cabos de aço, iça-os;
Prende a lona, retesa-a;
Dispõe as frutas, oferta-as;
E é tanta gritaria que os abacaxis se espetam para ouvir as conversas miúdas.
Ao final da feira, do dia, da vida,
O metal é reposto no caminhão, e os restos de vegetais são encestados, em clara demonstração do banquete que ali se fizera.

26- Tato sobre vida 
A vida:
esse tatear de olhos e ouvidos
ansiosos pela certeza,
e a certeza

é o fim e o fim
não existe

então ficamos
só com a ânsia mutilante da certeza
e tudo passa

e o amor vai
as chances
e o tempo, sempre
curto,
para a medida de nosso desejo

27- Tempo, terra e silêncio
Masco terra e vomito tempo.
terra comendo terra,
túnel comendo túnel.
-
Na profundidade das heranças,
no subsolo dos genes,
na alameda dos passados,
na perfuração dos dias e das noites, há
face interposta ao solo e
cara metida em terra,
debatendo, inutilmente, o aterrado ventre humano.
-
Em galerias e circunvoluções subterrâneas,
subjazem o primitivo e as eras,
em silêncio úmido e fecundo.

28- Ventres especulares
O corpo, líquido,
é-se água e saliva.
Escorre a pele, que
preenche poros e sulcos.


Acumula o sal das línguas,
o decanto dos suores.
Aspiram-se os ventres -


Não se é, reconhece,
Não se diferencia, espelha.
Somos apenas imensidão de águas.

29- Vocação ao cotidiano
Nascemos já com medo de nascer,
Esse medo de ser luz,
de brotar junto com o dia, de servir ao lado do sol.

De manifestarmo-nos, de sermos braços e mãos,
e saber que cada movimento importa,
que cada pensamento does matter - a expressão dos olhares refletindo o oceano de nós mesmos

De ter a cabeça oca para receber do mundo a realidade
De ter os olhos desimpedidos, para ver que tudo que acontece permanece acontecendo. 
De saber, de antemão, que o eterno é todos os dias da vida somados - tal seja, a eternidade é uma construção do presente.

30- Vocação de amar
Desguarda-te o amor
para os que não merecem
pois o julgamento cabe às mentes
e o raciocínio é avesso à arte
[de amar


Resguarda o cálculo
do fluxo contínuo de olhares
e carinhos
sendo a certeza

[ essa pressa desdenhosa do fim

o infortúnuo de ser humano
condição de medroso afastar
o estado contínuo do imprevisível
e a sensibilidade subjacente
de estar ao mesmo tempo
em tudo e em lugar nenhum.

31- Sentimental
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas,
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho
Desgraçadamente falta-me uma letra
uma letra somente
para acabar teu nome
Penso em pegar emprestado do conviva
Meu olhar recebe um: "Tá sonhando? Olha que a sopa esfria" 

É, eu estava sonhando, e via por todo lado o famoso cartaz amarelo:
"Proibido Sonhar".

32- Insaciedade da carne

Preste-se do corpo
Tente saciar-me com a pele,
que me deixa ainda faminto - incompleto - de ti.
Faça-o sem pressa,
para que possamos arder
mais uma, mais tantas,
incontáveis e insuficientes madrugadas, tardes e dias,
sempre incapazes
de caber o nosso desejo



Prosa poética


1- Distância da felicidade
A felicidade sempre esteve tão perto,
a um sorriso de distância,
que algumas vezes pude tocá-la, embora do abraço fugisse, desvanecendo tal qual uma nuvem.
Com essa ilusão vaporosa, crença no impossível, vontade do inexistente,
construí a base de minha vida, que hoje se torna tão aérea e tão imperfeita quanto o presente

2- Sonho
Tal qual um sonho fabrica-se a vida, e esse ser humano tão concreto de si mesmo.

Se fôssemos, a vida inteira, o objeto sonhado de um ser muito mais longevo que nossa pressa cotidiana.  Um ser feito de asas, de plumas, ou não, feito de escamas, ou simplesmente feito de mais tempo, uma inteligência luminosa sem corpo, cujo dormir fosse o despertar de uma vida humana.


Se existir a possibilidade de acordar no meio desse sonho, do mesmo modo que tomamos consciência de que estamos sonhando, ter a consciência de que se é sonhado. Ter a clara noção de que não se é, se está, a fazer parte no processo muito mais amplo de harmonia cósmica e progressão universal.


Descobrir-se uma célula, um órgão, uma parte ínfima pode parecer redutor para uma consciência fechada em si, mas parece ser passo para o autoconhecimento e etapa importante para própria evolução.


3- Tempo e perdão
O tempo é a oportunidade de nos reconciliarmos com a memória, com nossos erros, incompreensão e ignorância. É o meio de sintetizarmos a nossa curta vivência humana em um só núcleo, de trazermos, para o presente, o passado e as projeções do futuro.

Não há tempo certo para perdoar, mas aos poucos se percebe que viver sem perdão torna-se cada vez mais repetitivo e previsível, como uma gangorra sem jamais chegar ao equilíbrio. O tempo nos impulsiona ao vínculo verdadeiro de paz e harmonia a partir de uma perspectiva mais ampla, de uma vida inteira, de muitas vidas, de gerações.
  
Antes de recomeçar a jornada, sempre é o momento de retirar pedras do caminho, de remover espinhos e estilhaços das palmas. Perdoar a si e perdoar os outros, perdoar o passado e o presente, o reparável e o irreparável - até viver a vida como um único perdão, com um alívio capaz de revigorar o ser e tudo aquilo que o circunda.

4- Coletar estrelas

Como coletar estrelas se só possuo mãos humanas, com nodos reais de dor e marcas de carne. E as estrelas não comportam que lhes cheguem o sofrimento humano. São elas que abastecem os sonhos – e é justamente essa sua função, aliviar os fatigados pés, as mãos, e a cabeça , apontar ao silêncio perene, ao espaço infinito e à plenitude do universo.


5- Fim-de-ano presente

Neste fim de ano, fim de tempo, fim de dia, continua a existir o presente - em suas infinitas possibilidades.
Carreguemos deste Ano-Novo o renovar constante e a alegria cotidiana e genuína. Perpassemos o ano com esse sentimento de construir pontes - entre mim e o outro, entre nós e eles, entre Ocidente e Oriente, entre passado e futuro e, finalmente, entre o que nós fomos e o que nós vamos ser.

Contos

1- Horário e Marieta
Conferiu diligentemente o último cadeado. Era próximo das onze horas e, embora o sono já confundisse as visões noturnas, sempre pensara imprescindível aferrolhar os espaços. Sua vontade de invólucro não poupava as janelas - vedadas -, os ralos, os encanamentos, os televisores e até os minúsculos pontos de luz vermelha dos aparelhos eletrônicos. Após tudo apagar, sentia-se protegido.

Na casa onde moravam, tudo nunca esteve em outro lugar. O sofá amarelado cumulava a poeira que por entre as frestas invadia o recinto; o porta-retrato de tempos longínquos, com a foto em preto e branco batida pelo daguerreótipo, revelava uma família de ar gravoso; a fileira interminável de santos e de imagens, com peculiaridades e devoções tão próprias, desafiava os próprios mandamentos divinos; o café na pequena xícara de plástico bege, frio, esperava por um último gole. Graciosamente, o relógio de ponteiros no alto do receptáculo principal, em frente da mesa de jantar, mostrava ali o tempo de ontem. Se não parara, vagarosamente oscilava num movimento rítmico.

Conviviam desde muito jovens, casaram-se moços, após se conhecerem em dia de carnaval. Os blocos de personalidades populares da cidade desfilavam e quisera a história fosse um encontro singular e feliz de olhares. Não, o caso é daqueles não menos felizes olhares que restaram após todos os outros já se haverem acasalado - ou simplesmente deles desviado - e, sabe-se, a falta de opção é o prenúncio da vontade.

Horácio e Marieta repartiam o pão e os dias. Repartiam, na medida do possível, os sonhos - moldados pelas conversas em que Horácio convencia-a das verdadeiras importâncias da vida. E, enquanto transformava suor em carro, casa, mobília, sapato, escola, o dia-a-dia desafiava. O almoço era em torno das crianças, que nasceram ao longo dos anos. Copiosa prole tiveram:
umas choravam, outras balbuciavam, algumas já reclamavam dos sabores. À casa, a paciência acabara, e os pequenos apanhavam para se calarem e apanhavam para falarem, para sorrirem e para chorarem, para comerem e para jejuarem.

Marieta costurava os tecidos e os interesses de todos da família. O dinheiro da costura não dava para nada - mas nada por nada, sempre é preferível o nada que os alimentava nos últimos dias do mês. Se os provinha de alguma forma, o nada não era suficiente para lhe dar voz. Via, observava, detalhava - adornava a realidade de tal maneira que as crianças chegavam a fingir que gostavam de viver.

Os anos modificaram o sono de ambos de modo contrário, os efeitos imprevisíveis da idade. Por um lado, Horário prezava o sono vespertino, carregadas as pálpebras pelo peso dos intestinos, satisfeitos com o almoço prévio; aprazia-lhe, também, a dormida antes da meia-noite e o acordar concomitante aos primeiros sinais do sol. Por outro lado, Marieta cultivava a adoração da madrugada, acompanhada pelos programas de televisão, que proporcionam sentimento de comunhão com milhares e milhares, pelo mundo afora. Ela acordava tarde e intercalava em seu dia breves momentos de sonolência, um flerte com o sono, que lhe eram mais refrescantes que toda a noite. Impossível saber como essa rotina se impôs: se ao acaso do destino, se ao alvitre do casal - o fato, porém, era que com tal regime de sono só se encontravam ao meio-dia, quando religiosamente se dirigiam para almoçar, tal compromisso inescapável.

As últimas décadas, anos, meses, dias eram recortados, de forma a criar o cotidiano repetitivo em que viviam. O tempo fora ritualizado, numa liturgia intocável - quando pegos de surpresa por um acontecimento fúnebre, a morte de um conviva, ou mesmo terno, casamentos, bodas - tudo os irritava, no íntimo. A rotina, maquinal, cronometrada, premiava-os com o sentimento agradável de continuidade.

Encastelados no amplo apartamento, Horácio e Marieta fugiam. Viam reduzir progressivamente os contatos com o mundo exterior. Nem filhos, nem netos - se houvesse bisnetos talvez não o soubessem - pagavam-lhes visitas periódicas. A estima, como se sabe, guarda parentesco com os sentidos; à falta dos últimos, dificilmente floresce a primeira.

E se sentiam como ninguém abrigados por aquela casa. E não seria menos verdade o contrário, os cantos da casa já haviam se moldado à corpulência do casal. A mobília tornara-se a referência primária de suas vidas. De modo tentacular, abraçavam-na, agarravam-na, até deixarem a própria pele na superfície das madeiras.


2- Otacílio
A terceira vez sempre lhe causava mais dor e vermelhidão. Passou a lâmina novamente para se certificar de que nada escapara à sua vontade de assepsia, à necessidade de desbastar do rosto as escaras do caminho.

Agradava-lhe sobremaneira o ritual de barbear-se – nesse momento, não poderia haver pressa; pelo contrário, brincava com o tempo para que essa ação perdurasse o mais possível. A calma lavagem do rosto escondia, por vezes, a falta de tempo para o banho completo: aguar a face e raspar os pelos sem correria parecia-lhe o modo apropriado de compensar-se, ao mesmo tempo em que mantinha as condições mínimas necessárias para seguir em frente.

Ao chegar ao posto de gasolina, o cansaço de Otacílio era muito, mas o reconforto oferecido pelo abastecimento era-lhe proporcional. Salgada, muito salgada carne recobrava seus sentidos, já desacostumados ao paladar farto e saboroso. O café quente e aromático despertava os olfatos. O negrume do piche impregnado nas vestes dos motoristas de caminhão espalhava-se sobre o chão já encardido, transformando as extremidades do estabelecimento em local de acúmulo de substância negra, pastosa e móvel.

O cheiro dos alimentos misturava-se ao odor da gasolina. Ali, entre os bilhetes de fretes a vencer, os caminhoneiros recolhiam a refeição de modo quase automático. Os mais cansados dormiam no próprio balcão, com um jornal preso ao dedo, em acrobacia. Um improvisada bazar se organizava nos momentos de maior agitação, havia vendas e escambos: parafusos até raros guias rodoviários, pó-de-arroz e pó-de-guaraná. Na banca de recordações, podiam-se achar as mais procuradas compotas de doces de abóbora.

Sempre que desembarcava nesses entrepostos, os semblantes à sua volta pareciam familiares. O mesmo tipo de corte dos bigodes e o uso das mesmas expressões de fala aumentavam ainda mais essa regular familiaridade. Já com esse sentimento, o zumbido ao lado era sempre um chamado à conversa do momento.

As estradas eram o assunto principal dos motoristas - quando não estavam nelas, delas falavam. Havia sempre as diferentes observações sobre os asfaltos – buracos, acostamentos, direções, tortuosidades, trevos, bifurcações. E, assim, irmanavam-se os solitários homens de roupas de piche. Passaram pelos mesmos lugares – ali, a experiência individual da cabine do caminhão ganhava o coletivo mediante as conversas entre os caminhoneiros. Otacílio sentia-se muito bem após esses encontros - melhor, ele não só se sentia bem, sentia-se vivo.

Ao fundo, acima das cabeças de bonés coloridas, das mesas vazias e dos gritos mais exaltados, os televisores, para os caminhoneiros, noticiavam sempre acontecimentos distantes. Para eles, sempre era boa hora para seguir e o movimento constante lhes resguardava da imobilidade dos lugares. As palavras do noticiário dissipavam-se – entravam e saiam das conversas dos homens, menos pela compreensão mútua que pelo prazer do diálogo.

De estradas e silêncio é feita a vida de Otacílio. Os caminhos são a referência primária, e tudo o que o acompanha é transitório. Por vezes, em longas pistas retas, acometia-lhe o desespero de estar sozinho no mundo – procurava, nessas horas, no retrovisor, algum sinal de companhia. Quando o esforço era-lhe inútil, tentava sintonizar o rádio, e, se desse sorte, encontrava uma voz para acompanhá-lo na cantoria.

Embora preservasse o costume de dirigir somente ao claro, nas noites em que se sentia disposto a trabalhar, se dava conta de uma sensação de acompanhamento. Ao anoitecer, os pontos de luzes se viam – por vezes tão distantes que Otacílio se indagava se de fato os via. Otacílio imaginava que cada um desses sinais luminosos era um ambiente, onde as pessoas realizavam os atos mais singelos: um casal triste comia macarrão à mesa de jantar, a criança sorria à volta do pai, a velha senhora assistia insone à televisão.

Os caronas que apareciam à beira da pista sempre pagavam com entretidas conversas o transporte de alguns quilômetros. Homens magros à procura de aventura e moças grávidas expulsas de casa eram histórias comuns – não sabiam o que buscavam e a maioria não se importava com o destino do caminhão. É claro que havia o risco de acompanhar-se mal – tais casos eram raros e resolvia-se no próximo posto de gasolina.

Alguns caronas aceitavam distrair-se com jogos vulgares aos caminhoneiros: tentar adivinhar a soma dos números da placa do próximo caminhão. Com uma apostinha de nada, o tal jogo virava febres, pois dependendo da região por onde se trafega, há mais ou menos possibilidade de aparecimento de dígitos maiores ou menores. O jogo era tido como inofensivo, nunca houve quem já não fosse pobre e houvesse perdido tudo.

Os cigarros também lhe faziam companhia agradável, especialmente quando os momentos de silêncio se alongavam demasiado. Fumava seus tabacos enrolados com papel de seda, manufaturados com cuidado antes de cada reinício de jornada. O ato de fumar era importante para lembrá-lo de que era homem e estava vivo, e, mais importante, de que morreria.

Otacílio reconhecia, a despeito das distrações momentâneas, que sua principal companhia era o automóvel. Caminhão e homem estavam vivos na estrada. O último carregava a máquina e o primeiro carregava o homem. Respiravam ar e petróleo, em combustão simbiótica. Mais que juntos, unidos, ambos cheiravam a gasolina e transportavam as cargas.