segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Antologia "Cinza Cidade" (autoral)

Índice
1. Balada do Cerrado
2. Equação brasiliense
3. Espelhos, pombos e motoboys
4. Estágio Mané Garrincha
5. Foguete do Parque da Cidade
6. Malabarismo rodoviário
7. Porteiro Celso
8. Síntese da síntese
9. Suicídio no Pátio Brasil
9-A: Catadores de lixo
9-B: Sinal da rodoviária fechado

1. Balada do Cerrado

1.
De sangue e ossos contorcidos compõem-se os arcos da Catedral.
Deu-se, com dor e sacrifício, o parto de concreto.
Talvez deveria relembrar a mortandade na construção da Capital.
O monumento está aí - há diversas interpretações, mas cada um vê o que quer.
A obra feita e objetiva - alguém sugere - presta homenagem, visando à redenção do passado, através da beleza do presente.


2.
Brasília - esse sonho do homem embevecido pelo poder criador, 
essa brincadeira de fazer paisagens,
de emergir lagos,
conceber e povoar.


2. Equação brasiliense
Em Brasília, não se vive,
Tornamo-nos uma equação.
Viramo-nos latitude.
Quinze graus ao sul serão

Cada ser é um número.
Crava-se de quatro rodas.
Estampa-se-lhas na fronte.
Na luz do odômetro rodas.

Sem a singularidade
Habita-se em ordinais
Apartamentos da cidade

Esforço para o humano
Ser de novo carne, sangue,
Com coração, livre e sano

3. Espelhos, pombos e motoboys
Sensíveis vidraças
quadriculam as nuvens
enquadram e emolduram os céus da cidade
espelhando
            [ não somente a vida
as cabeças dos pombos,
que, estilhaçadas, rebentam nos retrovisores,
entrega-pizzas
farmácia 24h
serviços de ar-condicionado

4. Estágio Mané Garrincha
Escarpas de homens em movimento, na geral, conformam um arco humano no estádio do homem de pernas tortas. 
No domingo à tarde, álcool e gritos de torcida, misturados, carregam emoções e angústias dos outros dias da semana.
São camisas de cores, bicolores ou tricolores que significam o coração das torcidas ensandecidas, que se acotovelam para ver os pés ágeis dos jogadores realizarem espetáculo artístico e acrobático.

5. Foguete do Parque da Cidade
Pequenino, subia as escadas, 
agarrava, com as mãos, a barra acima,
enquanto empurrava os pés para baixo.

Degraus:
vermelho-amarelo
vermelho-amarelo
vermelho-amarelo

Os pés dos guris na minha frente projetavam areia no meu olho.

Passados os desafios, alcançava o topo do foguete e, como vencedor, observava as galáxias distantes, experimentava todo o conhecimento e lembrava-me com saudades da Terra, de cujo solo 

6. Malabarismo rodoviário
Asfaltos sorrisos aéreos de um indivíduos concentrado por joguetes circenses e malabarismos ao sinal fechado.

Através das janelas quadriculares dos ônibus, olhos - e são tantos olhos, miram, colados ao vidro, o artista feliz a mostrar suas habilidades ao sol de quarta (ou segunda) feira.

O bufão urbano, tão hábil em jogar, tão hábil em sorrir, chegava a distrair-se com sua arte, perdendo a oportunidade de recolher eventuais trocados dos motoristas apressados.

Sua paixão pelo movimento das bolas era tanta que ganhar as moedas se tornava secundário, prevalecia a diversão. Mais do que o entretenimento do número artístico, surpreendia o desprendimento do rapaz, ressoprando-nos, em pleno tráfego, uma brisa de serenidade e alegria.


7. Porteiro Celso
Celso descia os andares,
do sexto ao terceiro,
do terceiro à garagem.

Carregava amorfos sacos negros de lixo,
retirava-os das lixeiras - o orgânico e o inorgânico -
amontoava-os no elevador e dali para o depósito do prédio.

Ele fumava, mesmo quando as duas mãos estavam ocupadas.
Sabíamos sempre quando estaria, ou esteve, por perto. 
Os corredores por onde passava ficavam nublados.

meus pais acenavam para mim.

8. Síntese da síntese
Brasília é o nó da pátria feito de sangue
Esquartejada em superquadras, habitantes enquadrados em apartamentos.
Os brasilienses estão protegidos por silêncio de concreto,
escutado entre o folhear de jornais e as largas avenidas
Na síntese - existe desterro
No centro há desfiliação da genealogia
De onde recomeça a entropia de um novo Brasil.


9. Suicídio no Pátio Brasil

Em luto cotidiano pela morte da vontade,
recobrem o corpo - infantil e alado - de tecido invariavelmente preto

São tais corvos, cujas plumas só recordam o ocultismo.

Despojados de gênero, unem-se por música de um romantismo suicida.
Destituídos de personalidade, irmanam-se no desejo etéreo da satisfação imediata.

Atiram-se dos parapeitos com pretensa coragem. 
No fundo dos terraços são encontrados abertos os crânios, cujos imensos labirintos permanecem insondáveis.

9-A. Catadores de lixo
No verde e cinza picadeiro da cidade
atravessam a rua dependurados
na suja, suja barra de metal e barbarizam
em malabares
de sacos plásticos, de compensados, de fórmicas,
de restos ao chão.

De mão à mão, de lance em lance, destros movimentos ao ar –
pairando oscilantes no sacolejo da primeira e da segunda marcha -
atiram os dejetos ao caminhão
e a máquina prensa,
comprime,
tenta eliminar a maçaroca indesejada, que insiste na existência.
Chorume esguicha pelas engrenagens do metal,
queimado será o odioso e sólido detrito –
mas o fecal do homem, da natureza do mundo
deve sempre ficar e viver e mostrar
a recordação contínua do imperfeito.


9-B. Sinal da rodoviária fechado
Quentes chicletes,
halls,
bolsilhas de mel,
pastilhas de menta
esparramam-se pelo asfalto, dispostos por seres feitos de mãos.
E o vermelho luminoso só existem em seus olhos, escaldados ao retinente amarelo meio-dia.
Empalmadas moedas e notas saem dos doces açucarados -
devorados pelos porta-luvas.