terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Poemas para Becca


(I)

Quando repouso meu olhar sobre seu ser
perco-me no horizonte infinito de seus belos traços.

Despeço-me de mim mesmo.

A consciência transpõe-se para o terreno dos sonhos, onde só haveríamos eu e você num oceano de maravilhas.
Lá não existiria tédio nem televisão nem hora de dormir.
Nos comunicaríamos sem sons ou intervalos, sendo um o complemento do outro.
Viveríamos o amor inesgotável de duas almas que se encontram depois de uma longa ausência, desejosas que o tempo se torne a eternidade.

sábado, 2 de maio de 2015

Antologia "Poemas do Delírio" (na Mansão Vida)




Asas

O ser humano com asas
Conversa com os pardais
Corteja as borboletas
E escuta, humilde, o carcará

O preço das asas é saber
Que outras inteligências chegaram antes
Ao dar os primeiros voos
Faz-se necessário flexionar-se
Aos seres que aprenderam a nascer do ovo
Partindo do abismo profundo da inconsciência
Nascem, sozinhos, buscando a luz


Hospício

De modo assaz curioso
O hospício é o local menos propício para cometer loucuras
No mundo exterior, as insanidades são perdoadas,
Nada como colocar a culpa na bebida
Ou receber uma leve sanção social

Mas se desconhece os códigos ocultos de um Centro Psiquiátrico
Ali, a loucura é medida e contabilizada com inclemência,
Volta-se contra você sob a forma de arramas, grades,
E um tempo solitário e escuro que parece infinito


Incenso

Curta lâmina de cera queimada
Imbuída da essência – de almíscar a patchuli
Carbonizava-se incessante
Insubmissa às brisas
Um vida destinada a perfumar o ambiente


A  vida

Os desígnios do universo escondem-se
Em nós, e, meu Deus, como é difícil encontrá-los
Havemos de ser humildes para encontrarmos nós mesmos
E corajosos para sermos o próprio esmeril
Lapidando nossas mentes
Por um tempo longo demais para ser medido
e ao qual chamamos de eternidade


Édipo

A pior fuga é de si mesmo,
Porque, no fim, encontra-se com um terceiro,
Que, este sim, obriga-te a ver a própria imagem
Tantas vezes pavorosa imagem
Visão incapaz de suportar os olhos, tanto que o ímpeto natural
É arrancá-los da face
Assim, faz-se necessário adiantar mais e mais esse encontro consigo mesmo
Para que se torne mais sutil e delicado o universo de reflexões em torno do que
Se foi, se é e do que será


Bambu

No mundo de vastidão infinita
O conhecimento é sempre curto
Resta-nos reconhecer
Aquilo não é "um bambu"
É bambu e, no fim, é.
Percebamos que nada nos separa do bambu para assim, no íntimo,
Reintegrar-se bambu
E sonhar, quem sabe, com o delírio onírico de recordar-se bambu

Insanidade

Rasguei-me a mente
Estilhacei-me a inteligência
Perfurei meus pés e mãos
Sem sentir dor, pois a loucura analgesia.
Experimentei o prazer e o poder infinitos
E toda a sedução de crer-se criador do universo

Ao recobrar a consciência desse longo sonho acordado
Sofri as penas de um mundo de cabeça para baixo
Revirado, retorcido, pilhado, revolto, que me repelia a existência
Nada disso jamais me vira antes
O avesso parecia a direção certa, mas já me era interdita a insanidade
O problema não é a loucura, o desafio é sair da loucura e
Enfrentar-se louco, colher os pedaços de uma vida destruída,
Colar e costurar cada parte retalhada,
recompor uma imagem que jamais será tão vívida
Esquecer toda a composição antiga para
Redesenhar uma nova paisagem pessoal e novo retrato de si mesmo


quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Releitura de quatro poemas (métrica e rima, 2014).

Releitura de quatro poemas (métrica e rima). 2014.

Índice
1- Brasília em números
2- Bufão urbano
3- Folha morta
4- Sol em outro sol

1-Brasília em números
Em.Bra.sí.lia., não. Se. Vi.ve, =7
Tor.na.mo.-nos. Uma e.qua.ção. =7
Vi.ra.mo.-nos. La.ti.tu.de=7.
Quin.ze. grã.us ao. Sul. Se.rão =7

Ca.da. ser. É Um. Desses Nu.me.ros =7
Crava-se de quatro rodas.=7
Estampa-se-lhas na fronte.=7
Na luz do odômetro rodas.=7

Sem a singularidade=7
Habita-se em ordinais=7
Apartamentos da cidade=7

Esforço para o ser humano=7
ter de novo carne, sangue,=7
Com coração, livre e sano=7

Em Brasília, não se vive
tornamo-nos uma equação,
Viramo-nos latitude.
Quinze graus ao sul serão.

Cada ser é um desses números.
Crava-se de quatro rodas.
Estampa-se-lhas na fronte.
Na luz do odômetro rodas.

Sem a singularidade,
habita-se em ordinais
apartamentos da cidade

Esforço para o ser humano,
ter de novo carne, sangue,
com coração, livre e sano

2- Bufão urbano

SOR.RI.SO.AÉ.REO.BE.LO.FEI.TO.DE.AS.FAL.TO=12
UM.SER.SUS.PEN.SO.PE.LOS.JO.GUE.TES.CIR.CEN.SES=12
O.MA.LA.BA.RIS.TA.TI.NHAS.BO.LAS.AO.AL.TO=12
A.PE.NAS.O.COR.PO.EAL.MA.DE.SI. PER.TEN.CE=12

DOSÔ.NI.BUS.PU.LA.VAM.O.LHA.RES.CU.RI.O.SOS=12
PA.RA AD.MI.RAR. A HÁ.BI.LI.DA.DE .DO. BU.FÃO=12
JO.VEM.UR.BA.NOA.GAN.NHAR.SEU.TRO.CO.HON.RO.SO=12
AS.PI.RAN.DOA.FU.MA.ÇA.CO.LHIA.SEU.QUI.NHÃO=12

PA.RA.NÓS, OS MO.TO.RIS.TAS.AN.GUS.TI.A.DOS=12
A.QUE.LA.TO.DAA.LE.GRIA.NA.PRI.MEI.RAS.HO.RA=12
NOS.A.LEN.TA.VA.SUB.MIS.SOS.E.SE.RE.NA.DOS=12

QUE.RE.MOS.QUEO.SI.NAL.PER.MA.NE.ÇA.FE.CHA.DO=12
NOS LEM BRA MOS DE QUEO.AR.TIS.TA.TAM.BÉM.CHO.RA=12
VE.MOS.NO.POR.TA.LU.VA.SE.HÁAL.GUM.TRO.CA.DO=12

Sorriso aéreo belo feito de asfalto,
um ser suspenso pelos joguetes circenses;
O malabarista tinha as bolas ao alto,
Apenas o corpo e a alma a si pertencem

Do ônibus pulavam olhares curiosos,
para admirar a habilidade do bufão:
jovem urbano a granhar seu troco honroso,
aspirando fumaça colhia seu quinhão.

Para nós, os motoristas angustiados,
aquela alegria toda à primeira hora,
alentava-nos, submissos e serenados.

Querendo que o sinal permaneça fechado,
lembramo-nos que o artista também chora
vemos no porta-luva se há algum trocado.

3- Folha morta
 FO.LHA.SE.CA.JAZ.NO.SO.LO.MOR.TA=9
SU.PRIS.TE.VI.DAA.UMAAR.VO.RE.TOR.TA=9
A.COR.DAS.TEOOR.VA.LHA.DA.NO.SOL=9

JÁ.FI.ZES.TEA.CO.PAES.VER.DE.A.DA=9
HO.JEEM.PA.LI.DE.CI.DA.ES.TÁ=9
U.TRO.RA.DES.TE.SOM.BRA.AOS.QUE.=9
QUE.RI.AM.EM.SEU.LEI.TO.DES.CAN.SAR=9

RES.TA.CA.Í.DA.NA.CIN.ZAES.TRA.DA=9
 FO.LHA.MOR.TA.RE.NAS.CER.TE.Á=9
A.QUE.LA.VEN.TA.NIA.SEM.POR.QUE=9
FA.ZEN.DO.TE.BO.LE.RO.DAN.ÇAR=9
AO.CA.IR.DA.NOI.TE.EN.LU.A.RA.DA=9


Folha seca jaz no solo morta.
Tu já foste de um vivaz verde,
supriste uma árvore torta.
Outrora deste sombra aos que
queriam em seu leito repousar.
Acordaste orvalhada ao sol.
Já fizeste a copa esverdeada,
hoje empalidecida está.
Resta caída na estrada:
folha morte renascer-te-á
aquela ventania sem porquê,
fazendo-te tangos e boleros
dançar na noite enluarada.

4 - Sol em outro sol
DEI.TA.TEO.COR.PO.SO.BRE.MEU.COR.PO.=9
TE.US.O.LHOS.ME.US.O.LHOS.CO.LHEM=9
NA.MA.REIN.FI.NI.TA.DE.TER.NU.RA.=9
DEI.XO.TE.QUEAS.PER.NAS.MEA.FE.RRO.LHEM=9

SO.MOS.SÓ.LÁ.BI.OS.E.SA.LI.VA=9
TAL.UM.SO.NHO.SO.BRE.OU.TRO.SO.NHO=9
PEN.SA.MEN.TOS.DA.CA.MA.TRANS.BOR.DAM=9
AMOR: O .SOL.QUE.NAS.CE.RI.SO.NHO=9

Deita-te o corpo sobre meu corpo.
Teus olhos meus olhos colhem,
na maré infinita de ternura.
Deixo-te que as pernas me aferrolhem.

Somos só lábios e saliva,
tal um sonho sobre outro sonho.
Pensamentos da cama transbordam.
Amor: o sol que nasce risonho.




quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Antologia "Mensagens para Pasárgada"





Índice

1- Recomeço (26.6.2014)
2- Êxtase, sofrimento e loucura (27.6.2014)
3- Orgulho e crença (1.7.2014)
4 - Vó Julieta (3.7.2014)
5- São Paulo (7.7.2014)
6- Pai (10.7.2014)
7- Farmácia (11.7.2014)
8- Águas de outubro (21.7.2014)
9- Mãe (22.7.2014)
10 - Primícias do prazer (23.7.2014)

  

1- Recomeço (26.6.2014)

"Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim" (Chico Xavier)

"O que poderia ter sido e o que foi convergem para um mesmo fim, que é sempre presente." (T.S. Eliot)

"Não sou eu quem vive no passado, o passado é que vive em mim." (Paulinho da Viola)

  No início deste mês de junho, resolvi escrever relato de minha vida. Comecei pelas circunstâncias de nascimento, primeiros anos, relação inicial com o mundo e frustrações perante a vida. Demorei para perceber que o exercício proposto seria negativo.O texto se tornou verdadeiro muro de lamentações, onde recordava com pesar os contratempos, assumindo postura crítica e impiedosa.
  O objetivo era reportar imparcialmente os acontecimentos. Não era o que sucedia. Atava-me às emoções negativas e refestelava em meio aos infortúnios. Selecionava os fatos mais dramáticos e dolorosos somente para sentir pena e autopiedade. Arrogava-me injustiçado por Deus e castigado como Sísifo, carregando pedra pesada em direção ao cume da montanha.
  Foram necessárias dezesseis páginas para que eu finalmente concluísse - se tratava de interpretação. Não relatava, mas sim reavaliava com severidade e autocomiseração, gerando culpa e raiva de tudo que me escapara ao controle. sentindo-me o pior dos seres vivos na Terra. Ao escrever, não consegui lembrar-me de nenhuma ação positiva, generosa e verdadeiramente altruísta.
  Dei um ponto final naquela escrita. Chega de revirar lixo. Posso lançar renovado olhar sobre o passado. Fui abandonado, sobrevivi; humilhado, segui em frente; desprezado, resignei-me; engordei, emagreci. Mesmo com limitações, fui caridoso. A vida me desafiou de inúmeras formas e respondi com perseverância e força de vontade inquebrantáveis. Quando fui posto de joelhos, mirei para os céus e, submisso, orei: "Pai, já não ando com minhas pernas, ajuda-me".
  Propus novo marco, divisor de águas após período de revés e dificuldade que exigiu a reelaboração de conceito, valores e paradigmas de existência. Começar de novo é impossível. Não quero esquecer o que se foi, mas absorver, digerir e elaborar, com o intuito de fortalecer a resistência física, emocional e espiritual para novas dificuldades que certamente virão. Cicatrizes ficam e simbolizam batalhas vencidas, são honrarias de bons combates.
  Para esse recomeço, faz-se necessário reconhecer dádivas concedidas no presente, direcionar o pensamento para concepção de futuro, aceitar experiências pregressas, podar desejos e aspirações grandiosas e irreais e ser caridoso. Urge saber ser simples e internalizar que a felicidade não é ter mais, mas sim precisar de menos. O objetivo é aprender a amar e o meio é evolução do espírito.
  Ao desistir do citado relato, continuou a vontade de escrever. Depois de ter a vida chacoalhada e virada pelo avesso, sinto a necessidade de organizar as ideias, conceber nova realidade com base nas experiências adquiridas. Foi nesse momento que decidi criar este bloque, com mais liberdade que os antigos. A princípio publiquei By myself, for myself, contudo, leitor, é enorme prazer receber sua visita.


2- Êxtase, sofrimento e loucura (27.6.2014)

"Esvaziei-me de mim
Derramei os julgamentos e entendimentos no grande oceano da memória e do esquecimento
despi-me da pele e assoprei o passado
desfazendo-me das ilusões vaporosas do futuro
- respiro profundamente o presente -
aceito a ignorância humana
e submeto-me ínfimo e livre 
a ser forma cambiante do imenso caleidoscópio universal
- receptáculo da consciência de todos os tempo, espaços, seres, do dito, do silente, do pensado e do inconcebível."
(Brasília, 2011)

"Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro de suas consequencias" (Pablo Neruda)


    Quando escrevi o poema estava passando por fase em que me esforçava para conseguir abertura completa para o transcendente, por meio de meditações, jejum e exaustão física. Pouco a pouco, vi-me como um ser conectado ao todo, ao universo, de onde eu deveria receber as orientações para guiar a vida. De modo confuso, tentava captar padrões vibratórios e pensamentos exteriores. Sentia-me espiritualmente elevado.
  Cheguei aonde queria, vivi o êxtase. Tive intuições precisas e o que realizava parecia integrado ao cosmo. Sentia que o universo coincidia plenamente com minha vontade - nunca estivera tão feliz e realizado. Considerei-me sobre-humano, capaz de chegar ao estado de iluminação que poucos seres humanos haviam atingido. Predominou inabalável sentimento de superioridade ante as outras criaturas.
  Logo se revelaram imprudência e equívoco. A permanência em estado alterado deixou-me vulnerável. Surgiram conselhos e sugestões negativas, destruidoras e megalomaníacas. Em busca da  conexão plena com Deus, fui subjugado por entidades dispostas a me prejudicar. O resultado desse processo foi desastroso, tive grave crise psiquiátrica. Acabei abolindo a consciência e indo para o lado de lá. Quando achei que estava dominando a loucura, ela tomou-me o controle da mente e raciocínio.
  A crise foi denominada Transtorno Afetivo Bipolar, mas o termo não a descreve perfeitamente. De fato, passei por fase maníaca e  por depressiva. As duas foram agudas. A mania durou aproximadamente um ano; a depressão, um ano e meio. Corri perigo, poderia ter cometido mutilamentos, suicídio, homicídio...
  Anulei imaturamente o ser e a consciência. Descobri da maneira mais difícil que eliminar o ego não é meio para ascensão espiritual. É justamente a persona desta existência que nos protege por meio de constituição orgânica, mental e espiritual. Elevação acontece por meio do ego, sem, contudo, nos identificarmos com ele. Estamos o presente ego, mas não ele não é o que somos. Esse processo de emancipação da alma não dá saltos, desenrola-se ao longo das "dobras dos milênios" (Emmanuel).
  Jamais saberei precisamente o que ocorreu comigo. Estou em processo de recuperação e começo a delinear o que sobrou de mim. 
  Não recomendo o caminho que trilhei - perseguir a iluminação, nesta vida, a qualquer custo. A abertura dos chakras e do campo psíquico pode levar à insanidade. Somente mestres e espíritos evoluídos conseguem distinguir emanações do universo - de Deus - das influências de egos desta, de outras vidas ou  de espíritos inferiores. 
  Vivi momento ilusório em que tudo dava certo - saúde, dinheiro, sexo, liberdade, independência, força. O universo conspirava a meu favor. Passei a acreditar que Deus estava às ordens e, depois, concluí que eu era Deus. Tudo deveria ocorrer conforme a minha vontade. Não aceitei desatenções, tirei satisfações com todos, tive sexo desvairado, lutei boxe com a força dos lunáticos, destratei os amigos, afastei-me da família. Achei que, se todos seguissem minhas orientações, o mundo seria o paraíso.
  Gradualmente, o comportamento saiu do meu controle, passei a agir de modo incompreensível e desconexo. Em junho de 2012, tive a crise, fiquei três dias trancado em casa, quebrei todo meu apartamento. Pendurei instrumentos na tela de minhas janelas, gritei, pisei em cacos de vidro sem senti-los, e, finalmente, quando achei que viria o reconhecimento grandioso de divindade, fui internado.
  No dia 28 daquele mês, cheguei desfalecido à Mansão Vida. Perambulei pela clínica por trinta dias, dopado e desorientado. O tempo era eterno, não passava, tudo parecia igual - somente cigarros e refeições davam alento aos internos. Cheguei a fazer amigos: viciados, alcoolistas, alguns em estado semivegetativo e vários na mesma situação que eu. Recebia visitas aos domingos, gritava impropérios contra mamãe e meu irmão. Era um espetáculo dantesco e sofrível.
  Aceitar os mandamentos do universo é fácil quando ventos sopram em favor das velas. Posteriormente, entretanto, vi-me em recuperação, com diversas limitações, medicamentos, gastos, dúvidas. O sofrimento foi insuportável e não havia mais lágrimas para verter. Recebi as consequencias de meu período de semideus: corações partidos, amigos afastados, carreira prejudicada, cognição lenta, inesgotável culpa e profunda sensação de vazio. Tive a certeza de que havia destruído irremediavelmente minha vida.
  Refutei os fatos. Não aceitei a realidade. Tive depressão suicida, da qual sem o apoio de família, namorada, psiquiatra, psicólogo e amigos poderia jamais ter saído. Com suporte espiritual, tive forças para compreender o episódio. Aconteceu comigo, não sei o porquê, mas acredito que foi por causa justa. No íntimo, sei que precisava dessa chacoalhada da vida, meu mundo estava em desordem e o futuro seria de infelicidade. Estou em momento excelente. Vivo há dois anos em recuperação e só agora o tratamento avançou. Retomo as atividades, responsabilidades e prazeres e estou imensamente feliz e grato por receber esta nova chance.
  A palavra-chave para o soerguimento tem sido submissão. Repito - quando prevaleceu a fortuna, foi conveniente crer na justiça do destino -, mas, ao se apresentarem os infortúnios, tornaram-se quase irresistíveis revolta e angústia. Somente assumindo que não estava no controle, que não dava conta do pesado fardo, e pedir, inconsolável, por ajuda, a dor tornou-se mais amena.
  Elevação consiste em aceitar bem-aventuranças e intempéries tal qual elas se apresentam, de modo flexível, sereno, seguro e grato. Entendo hoje ascensão espiritual como a tentativa de aproximar-se de Deus, escutá-Lo e receber Seus desígnios com mansidão. Na minha opinião, felicidade, em última instância, é irmanar-se à vontade Dele e vivenciar o mais difícil: "Pai, seja feita sua vontade".

3- Orgulho e crença (1.7.2014)

"O orgulho e o egoísmo são as duas chagas da humanidade" (Allan Kardec)

"A complete life may be one in so full identification with the nonself that there is no self to die" (Bernard Bereson)

  Orgulho me impossibilita relação mais direta e constante com Deus.
  Ao longo da vida, passei por fases de crença e descrença. Tive formação católica, mas os dogmas e orientações não satisfizeram minha mente infantil crítica e racional. Posteriormente, fui evangelizado através do espiritismo. Concordava intimamente com a principal premissa espírita, a reencarnação, no entanto, achei a religião passiva e submissa, subtraindo do homem autonomia e independência.
  Na adolescência cria que o objetivo de vida era aumentar nossa capacidade de amar, por meio do exercício da bondade. da doação ao próximo e da busca da felicidade. Satisfazia-me o seguinte raciocínio: você faz parte do mundo, se você beneficiar o mundo vai fazê-lo por si mesmo. Não havia nenhuma afirmação incontestável, somente raciocínio básico e linear. Não existia também Deus absoluto e superior aos homens, a cujos desígnios deveríamos obrigatoriamente nos curvar.
  Na faculdade, tornei-me materialista. Citava "A religião é o ópio do povo" (Marx) e "A religião é o que impede os pobres de matar os ricos" (Napoleão). Considerava crença em Deus postura de fracos e derrotados e fé como sinônimo de ignorância. Sentia-me bem ao abolir a ideia de que existia algo superior ao ser humano - "O homem é a medida de todas as coisas" (Protágoras). Analisava a vida de Jesus, "O Maior Psicólogo de Todos os Tempos", embora não visse no Mestre nenhuma ascendência divina. Meu ego estava contemplado em sua plenitude, só havia eu mesmo para decidir sobre a vida, sem interferência do Alto.
  Ao fim dos vinte anos, necessitei de mais explicações acerca dos fenômenos - vida e morte, felicidade e sofrimento, fortuna e revés, determinações de nascimento. Busquei na  astrologia, filosofia, prosa, poesia, pintura, música - nada me bastava. A ausência de resposta criou em mim um abismo do qual não conseguia me erguer. A astrologia tornou-se vício, por meio da qual esperava encontrar a fonte completa de informações da existência. Encontrei a explicação do amor em Platão, orientações de conduta em Adorno, premissa de vida em Sartre, cosmogonia em Nietszche. Nada me saciava. O ego não admitia ainda nada superior ao ser humano.
  Tornara-se óbvio que necessitava de superar o orgulho e o egoísmo, mas não sabia o caminho a seguir. Debrucei-me sobre o Budismo - concordava com a transmigração de almas, o desenvolvimento do amor e da compaixão, o carma, a natureza da mente e a superação do princípio da separatividade. Agradava-me a ideia de que Deus era tudo, o universo, cada um de nós. Seríamos parte de Deus e que, ao nos unirmos, Ele finalmente existiria. Aprazia-me pensar que não haveria nenhuma individualidade após a morte - dissover-nos-íamos - sem prestação de contas posterior.
  Até então, vontade e determinação me levaram ao ponto em que almejava. Emagrecer, passar no vestibular, conseguir mulheres, entrar no Instituto Rio Branco, tudo me vinha à proporção do meu esforço. Acreditava que a perseverância seria suficiente para ganhar o mundo. Descobri que não era verdade. Frustrei-me e as forças foram progressivamente minadas pela inquietação e angústia. Nada me saciava - não aceitava a ideia de que tudo não ocorria conforme meu desejo. Era incrédulo e tripudiava sobre a ideia de que existia Deus. Irritavam-me demonstrações de fé ao meu lado.
  Com base em presunçosa autossuficiência comecei a sentir-me acima de todos os homens, bem dotado e talentoso, com direitos extravagantes e capacidades desmedidas. Passado esse momento de ilusão, a vida desmoronou, partiu em pedaços, revirou de cabeça para baixo. Emergiram dor e sofrimento incomensuráveis. Consternado, procurei todas as formas de socorro psiquiátrico e psicológico. Finalmente, resignei-me para o apoio espiritual, reencontrei o Espiritismo.
  Apesar de eu haver me encontrado nesse caminho espiritual, não quero dizer de modo algum que seja o único para o encontro com Criador. Chico Xavier nos ensinou "Se Allan Kardec tivesse escrito que "fora do Espiritismo não há salvação", eu teria ido por outro caminho. Graças a Deus ele escreveu "Fora da Caridade", ou seja, fora do Amor não há salvação."
  Foi-me difícil acreditar em Deus como inteligência suprema do mundo, juiz e conhecedor de todas as ações. Tamanha foi a dor, no entanto, que só só me restou recorrer ao Cristo, tornando-me inescapáveis a crença da eternidade do espírito e da infalibilidade de Deus. Somente a lei de amor e a da ação e reação puderam consolar aquele sofrimento à primeira vista inexplicável. Pelo sofrimento, meu orgulho sofreu arranhões. Continuo trabalhando firmemente nesse propósito de diminuir o egoísmo, nem sempre fácil.           Tenho fé de que superarei esta atual etapa de minha vida. Com força de vontade, determinação, o apoio de todos - médicos, psicólogos, guias, parentes, namorada, amigos - e com Deus, que ocupa o papel principal neste processo. Meus objetivos principais da vida tornaram-se: fortalecer a minha fé, mitigar o orgulho, desenvolver a generosidade, ter uma família feliz e carinhosa, exercitar a minha vocação através da ação profissional, ser responsável por todos os meus gestos e ações e, assim, caminhar para a evolução espiritual.

4 - Vó Julieta (3.7.2014)

"Sua pele do rosto era sarapintada e 
rodopiar seu cotovelo foi meu passatempo preferido. 
Das rugas conseguia ouvir a música do passado, canções de ninar e histórias de romances desafortunados.
O sorriso escondia o segredo do envelhecer; sua voz , a origem dos cabelos brancos.
Superfície da tez já fora totalmente tomada por pintas amarronzadas, umas claras, outras escuras, cujo conjunto me parecia refinado tapete persa.
A velhice era tão distante que parecia vinda de outra galáxia - tão distante quanto para ela era minha infância.
O amor nos trazia ao presente, um complementar ao outro e refletido em nossos olhos. Éramos apenas duas etapas a serem transcorridas pelas nossas vidas, separadas apenas por curto tempo."
(Brasília, 2010)

  As unhas de vovó são compridas e duras, com a pintura desgastada nas pontas. Às vezes aparecia com a pintura vermelha completa, mas logo desaparecia o colorido por conta das lidas de dona-de-casa: lavar vasilha e roupas, cozinhar, limpar, organizar, cuidar de crianças, atender ao vovô.
  Embalava-me no colo e acariciava com sua velha mão. Entoava canções de ninar - Samba Lelê, Tutu Marambá, Rei Zulu, Serra-serra Serrador. Escondia e reaparecia só para admirar as gengivas cor-de-rosa em sorriso gostoso. Em sua sala de costura, deixava a TV 14´ ligada e distraidamente olhava de relance programas de auditório, missas e comerciais. Ficava um sonzinho contínuo, quase indistinguível, enquanto brincávamos.
  Nas fotos da velha Kodak, apareço rindo e chorando em seu colo. Estou de todo jeito - nu,, vestidinho de marinheiro ou com brinquedo à mão. Costurou roupinhas, limpou as fraldas e comprou alfinetes coloridos com caras de bichinhos . Auxiliava mamãe com mamadeiras (leite, mamão e banana), cuidados, viagens, escolinha e educação.
  Estruturou o lado lúdico de minha personalidade. Foi bailarina, tocava piano, frequentou classes de francês e teve aulas de pintura. Deu-me seu caderno de desenhos, onde pude ver imagens de carranca, manequim e natureza morta. Muito tempo depois, imitava seus croquis por distração, só para ter algo mais em comum com ela. Sua caligrafia é demorada, caprichada - rebuscada, mas não expansiva - adora  escrever à mão mensagens de aniversário e natal.
  Dei a sorte de nascer em Brasília. Ela morava na 202 Norte, onde moramos também por um ano. Depois, mudamos para 203 e a proximidade permaneceu até os dias de hoje. São menos de quinze minutos a pé, é só atravessar um gramadão entre as quadras. Costumava telefonar à noite para que ela viesse dormir comigo - e lá vinha ela para satisfazer o desejo do netinho. Deixava-me assistir a TV até mais tarde, para o desagrado de mamãe.
  Ensinou-me a rezar Pai Nosso e Ave Maria, mas eu não decorava de jeito nenhum. A fé parecia me proteger naquele momento de oração. Devota de Santa Rita de Cássia e Nossa Senhora desatadora de nós, frequenta missa ao menos uma vez por semana e recebe a comunhão com reverência. A paróquia é oportunidade social, faz amigas, bate papo, participa de churrasco beneficente e doa produtos para o bazar comunitário.
  Foi indulgente com as peripécias e faltas. Protegia dos castigos maternos e salvava das complicações. Houve uma vez em que não devolvi fita de Super Nintendo chamada Final Fantasy para a locadora Canal 3. Totalizou uma semana de atraso e a dívida acumulara. Para salvação, ela não só me deu a quantia necessária, mas também não contou para meus pais, um grande alívio.
  Coleciona apelidos carinhosos - Juju, Delícia, Borboletinha, Fadinha - parece saída de um desenho da Disney. Bem baixinha, magrinha, voz doce e melíflua, simpática, faz colegas imediatamente. Tem a personalidade adaptável, até subserviente, e consegue esconder bem seus defeitos. É teimosa, concorda na frente, mas faz o contrário nas costas, e mão-de-vaca, principalmente com ela mesma.
  A família Valle é Julieta. A agregação dos familiares se faz através dela. É consenso de que vale a pena estarmos juntos, pois ela nos ama tanto que é impossível permanecer indiferente. Olha os netos com admiração e ternura, fazemo-na exultar de alegria. Colações de grau são a comemoração preferida, veste-se de gala e vai tirar fotos com o canudo na mão.
  Costumava fazer almoços mensais aos domingos, mas hoje preparar a casa para muita gente já não é conveniente. Preparava religiosamente comida cuiabana. com arroz, salada de tomate e alface, farofa de banana e pacú assado. De sobremesa, servia-se geralmente mousse de maracujá ou doces árabes.
   Juju é prática e intuitiva. Não lê livro, teoriza ou filosofa. Costura e tira manchas como ninguém, e o faz com gosto. Tem o hábito de caminhar, sempre com sacola à mão - seja entre quadras, supermercado Big Box, frutaria Tigrão, Correios, banca de revistas, papelaria, igreja, salão de beleza da Casa do Ceará. Já mencionei sua teimosia. Ela continua dirigindo inadvertidamente, quase invisível ao volante do Siena vermelho.
  Ao escrever sobre ela, concluo que queria ser mais parecido com vovó. Anseio, por osmose, adquirir as qualidades de mansidão, simplicidade, sensibilidade, carisma e fé.  Sei que não estou ao lado dela por acaso. Deus me confiou o exemplo, agora cabe a mim a responsabilidade de desenvolver essas características. O amor entre nós me inspirará, para, quem sabe, conseguir alçar os patamares sublimes de sua alma.


5- São Paulo (7.7.2014)

"E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso"
("Sampa", Caetano Veloso)


" São Paulo: horizonte cinza de incontáveis construções que bordeia multidões e automóveis.
De seu centro inapagável erguem-se arranha-céus do Citibank, Bradesco, Itaú, em ruas escritas em tupi-guarani.
Ali se sente o fluxo de onde são originadas as manchetes do Estadão  - Bovespa, Pacaembu, Paulista, Periferia. 
As esquinas movimentadas plasmam solidão e liberdade entre milhares de rostos desconhecidos.
A cidade adianta-se, seu tempo é o futuro."
(Brasília, maio de 2010)

   São Paulo me traz boas lembranças. Lá, permaneço agitado, batimentos sobem, sono vai embora - é como se o ritmo febril da cidade me envolvesse. Tantos acontecimentos ao mesmo tempo e eu somente um indivíduo. Há milhões possibilidades de escolha de onde estar que fico com a sensação de leve frustração, justamente por ser impossível aproveitar tudo.
  Minha história com SP começa com o punhado de visitas na infância, pois a família libanesa de meu pai radicou-se ali. Estive na cidade umas seis quando adolescente e anualmente quando adulto. Apesar dessa experiência limitada, a impressão é de que estou familiarizado com a cidade, como se tudo aquilo já fizesse parte da minha criação.
  Quando criança, ia de um lado para outro em casa de parentes. Se não me engano, a casa de minha vó Amélia ficava em Moema, onde moravam dois de meus tios. Ficávamos na casa dela, em cômodos não muito confortáveis. Nessas viagens, conheci a tônica da maioria dos imigrantes- trabalho, trabalho e trabalho - mormente em restaurantes e bares. Todos os membros da família tinham nomes incomuns - Hannah, Fádua, Chucrala - e falavam entre si em árabe. Achava bonita aquela língua estranha, quis aprender, mas meu pai, embora soubesse comunicar-se oralmente, nunca conseguiu me ensinar. A comida de vovó erá inigualável - quibes, esfirras, tabules, kaftas, enjadara, coalhada seca.
  Prédios altos, ar acinzentado, pessoas caminhando na rua, metrô - tudo era novidade. Colava meu rosto no vidro do carro e admirava aquela cidade insone, imensa, velha e ativa. O que mais me impactava era o povo na rua, o que para um garoto brasiliense pouco viajado era uma aberração. Nessa época, atormentava meus pais para realizar os caprichos infantis. Com uns 11 anos, queria porque queria ir ao "Simba Safari", Shopping Ibirapuera e a uma loja de cards de cujo nome não me recordo. Não fomos ao Safari nem à loja, mas fomos ao Shopping, onde pude aproveitar os fliperamas mais avançados, ainda não disponíveis no Park Shopping, de Brasília.
  Mais tarde, fui disputar campeonato de "Magic: the Gathering", jogo de cards levado muito a sério por mim. Fui com a equipe de Brasília e nos hospedamo em acomodações baratas próximas à quadra poliesportiva que abrigava o torneio. Na disputa, que durou dois dias, ocorreu uma das maiores frustrações juvenis. Perdi de virada nas oitavas-de-final em partida dramática, suspeitava até mesmo de fraude do oponente. Depois desse episódio, desestimulei de jogar Magic.
  Por volta dos vinte anos, estive por uma semana com a turma do curso de Farmácia da Universidade de Brasília. Naquele momento, além das gigantescas indústrias do ramo farmacêutico (Bayer, Pfizer, Shering-Plough), conheci a frenética balada paulistana e a tão desejada Galeria do Rock, onde comprei London Calling, do The Clash, e Facelift, do Alice in Chains.   Era fissurado no rock de SP e talvez o álbum Titãs - Acústico MTV, primeiro volume,  seja o que mais escutei em toda minha vida..Decorei todas as músicas e passei umas férias inteiras com o fone-de-ouvido do meu discman tocando Marvin, Flores, Nem Cinco Minutos Guardados, no replay.
  Observei que não existia nada mais paulistano do que andar pela Paulista com pressa. Gostei de divisar a efervescência da Avenida com a calma de visitante. Naquelas passagens, vi algo inédito: casais homossexuais caminhando de mãos dadas e até mesmo se beijando em público. Em meio àquela confusão de automóveis e pessoas, fotografei arranha-céus e descobri distorções visuais no reflexo de suas janelas espelhadas. Tudo que conhecia de Brasília - carros, gente, bares, loja, dinheiro, arte - parecia condensado na Paulista e adjacências. Não se pode chamar de noite o que vem depois das 18h. Tudo vive, quem sabe até mais - quando o sol se põe e as luzes e os farois são acesos. Havia festas de música eletrônica, dancing, forró, retrô, samba. Adoniran Barbosa, de "Iracema" e "Vila Esperança", me encantou pela singeleza e referências a estações e viadutos.
  Identifiquei-me de pronto com o perfil médio dos paulistano - distanciamento à primeira vista, senso de responsabilidade, humor tímido e inteligente, valorização da instrução e do trabalho. Em Brasília, a prestação de serviços era amadora; em SP me agradava o profissionalismo do comércio local. Logo descobri que para se viver bem é necessária uma fortuna, pois é uma das cidades mais caras do mundo, desde valet parking até educação superior. Na minha opinião, subjaz no corpus cultural valorização excessiva do dinheiro, promovendo adversidades como a segregação social. Sobre isso, recordo-me do recente episódio "gente diferenciada" de Higienópolis, que, junto com Jardins, abriga parte significativa da elite do país, com pecha de preconceituosa.
   As dificuldades da urbe são óbvias - o caos da metrópole surge à primeira vista. Junto com Cidade do México - SP é paradigma de problemas urbanos. O engarrafamento demonstra que as vias de transporte urbano tanto internas quanto intermunicipais estão saturadas. O trajeto periferia-centro-periferia pode consumir horas todo dia, deteriorando a qualidade de vida do trabalhador e promovendo concentração de renda. A indignação dos cidadãos chegou a tal ponto que o aumento da passagem de ônibus gerou protestos, em junho de 2013. Essas manifestações multitudinárias se espraiaram por todo Brasil, gerando um movimento expressivo de insatisfação social e política. Somam-se ao alto custo de vida e à falta de mobilidade urbana problemas de abastecimento de água, especulação imobiliária, poluição atmosférica e os de ordem mais geral, como saúde, educação e segurança pública.
  Tenho conhecimento superficial sobre a história política de SP. Estudei o predomínio dos barões do café no Império e a "política dos governadores" na República Velha. Memorizei aspectos pitorescos: o Governador Adhemar de Barros, o "rouba, mas faz"; a governança de Jânio Quadros e o caráter inescrupuloso do seu político contemporâneo mais conhecido: Paulo Maluf.
  Pelo que sei, na Nova República, o predomínio do PSDB no cenário político é transparente. Certamente seus representantes fizeram gestões adequadas, com fomento a indústria e privatização da malha rodoviária, porém prevaleceu o viés conservador, especialmente no que se refere a políticas sociais e participação popular. A influência paulista no Governo federal se fez presente, desde a era de FHC até a de Lula, que, embora pernambucano, fez carreira no sindicalismo na região do ABC. Os cargos de Governador de SP e Prefeito da capital foram ocupados tradicionalmente por tucanos A gestão Marta Suplicy para Prefeitura foi interregno e a eleição de Fernando Haddad (PT) no último pleito significou perda de popularidade do Partido Social-Democrata do Brasil. Existem questionamentos no seio do PSDB, cuja cúpula se preocupa com a candidatura de Alexandre Padilha (PT) para o cargo de Governador, nas eleições vindouras de outubro.
   Em 2010, saí, em missão diplomática para Doha, de Brasília fui para Guarulhos, de onde faria conexão em direção a Amsterdã e de lá seguiria para a capital do Catar. Nesse meio tempo, houve a erupção do vulcão islandês Eyjafjallajökull, cuja fuligem espalhou-se pelos céus europeus impedindo o tráfego aeronáutico por semanas ou dias, a depender do país. Tive que permanecer em SP, sempre atento aos informes da companhia KLM, que a qualquer momento poderia solicitar o embarque dos passageiros.
  No começo fiquei tenso, mas depois relaxei. No fim das contas, fiquei 7 dias no Holiday Inn da Parada Inglesa. Estava em andar elevado e a vista dava para um mar de prédios, andaimes, operários, vigas de metal que pareciam intermináveis. A partir estação de metrô, que ficava a aproximadamente 1km, pude visitar MASP, Pinacoteca, Museu da Língua Portuguesa, galerias de artes visuais, livrarias imensas e o Cinema Bellas-Artes. Como já tinha alguma grana, fiz comprinhas na Paulista e pude experimentar pratos de bons restaurantes. Descolei um curto affair que tornou a viagem impecável.
  Dois anos depois, namorava uma paulista, de Campinas, e SP era nosso ponto de encontro. Ficávamos em um flat caro e agradável próximo à estação Paraíso. Entre caminhadas, restaurantes e cafés, havia tempo para fotografia, visita a amigos e pequenos tours turísticos, como o Museu do Futebol, no Pacaembu, e até uma curta estada em Paraty. As visitas se tornaram mais frequentes e a vidração por sampa cresceu, minha vontade era andar de metrô, parar em cada estação e andar ao redor de pelo menos três quadras, brincando de achar a diferença entre elas. Lamento não ter tido tempo de penetrar um pouco mais na cultura da periferia do rap, hip-hop, grafite, poesia, etc.
  Desde adolescente cultivei o sonho de morar em SP. Antes poderia ser por oportunidade profissional ou acadêmica, vinculação amorosa ou mesmo um ano sabático; mas, neste momento de minha vida, a mudança exigiria contemplar todos os aspectos da minha vida, o que é praticamente impossível. Pressinto que o desejo de viver lá signifique a pretensão de ver tudo, o que seria impossível mesmo com centenas de vidas. Talvez seja justamente por não habitar lá a razão da minha fascinação, mas não importo. Fico com esse sonho inacabado.Resta-me vivê-lo parcialmente nas visitas periódicas, conhecendo e respeitando o universo próprio daquela imensa cidade.  

6- Pai (10.7.2014)


As tuas mãos tem grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já cor de terra
- como são belas as suas mãos -
pelo quanto lidaram, acariciaram, fremiram 
na nobre cólera dos justos

Porque há nas suas mãos, meu velho pai,
essa beleza que se chama simplesmente vida
E, ao entardecer, quando elas repousam
nos braços de tua cadeira predileta
uma luz parece vir de dentro delas...

Virá dessa chama que pouco a pouco, lentamente
vieste alimentando na terrível solidão do mundo
como quem junta gravetos e tenta acendê-los contra o vento
Ah, Como os fizeste arder, fulgir,
com o milagre de tuas mãos

E é, ainda, a vida 
que transfigura de tuas mãos nodosas...
essa chama de vida - que transcende a própria vida...
e que os Anjos, um dia, chamarão de alma..."
(As Mãos do Meu Pai, Mário Quintana)

Where do I find the words to say?
How do I teach him?
What do we play?
Bit by bit, I´ve realizes
That´s when I need them
Thar´s when I need my father´s eyes
(My Father´s Eyes, Eric Clapton)

  Há semanas procuro falar com meu pai. Ele não atende, não retorna minhas ligações e nem curte meus links no facebook. Imagino que não esteja bem, mas sei que tenho de respeitar o tempo dele, apesar das saudades.
  O poema de Quintana descreve também as mãos de meu pai: grandes, nodosas, generosas, divinas. Não por acaso escolheu a profissão de pediatra. Sua palma envolve os recém-nascidos e seu calor os acalma imediatamente. Trabalhou como neonatologista em UTI durante um período. Imaginava-o recebendo os bebês no colo, salvando-os do risco iminente de morte, trazendo à vida novamente.
  Talvez por trabalhar com crianças, dorme feito uma. Sempre tive inveja de seu sono pesado e imediato, sono dos justos, dos limpos de consciência. Adoro vê-lo dormindo, escutar a respiração profunda e pesada. Quando pequeno ficava puxando os pelos de seu braço e apertando as bochechas para ser se estava realmente vivo. Pedi o segredo de tamanha facilidade para repousar, ele respondeu: "durmo com o Pai Nosso, acordo com a Ave Maria".
  É religioso sem qualquer ritual. Adorador do Cristo, utiliza corrente dourada com pingente do Mestre. Já foi ortodoxo, espírito, evangélico, mas, para mim, ele é sobretudo cristão. Deseja fielmente fazer o bem, embora nem sempre o consiga. Confunde boas intenções com desejo de ser o salvador do mundo - mete o pé pelas mãos.
  Mencionei no post Em São Paulo, o pai tem origem libanesa. Fisionomia árabe, alto e narigudo, parece com o Antônio Fagundes, o que para ele é motivo de orgulho. Bonito e conquistador, colecionou dois casamentos, dois divórcios, diversas namoradas, várias peguetes e uma longa solidão entre elas. Hoje, diz que não é talhado para o namoro, embora eu suspeite que, no íntimo, está doido para juntar de novo as escovas de dentes.
  Lá por 2002, no curso de Terapia Comunitária, fiz regressão da memória por meio de hiperventilação. Achei que era bobagem, mas depois entrei em transe durante o qual vieram memórias perfeitas da infância, mesmo emoções. Cheguei a acessar a fase bebê. A recordação mais vívida foi o colo de pai, senti-me abrigado, protegido e amado como nunca antes. Impossível esquecer a brandura e o calor daquele momento.
  Esportista, pai sempre me incentivou para atividades físicas. Após plantão de 12h no hospital, chegava 7h da manhã do sábado, me acordava e levava à escolinha de futebol do professor Barbosa. Eu não conseguia me concentrar em campo e ele gritava comigo lá de fora, ensinando táticas e posicionamentos. Não fui um jogador hábil naquele tempo, mas valeu o esforço e o tempo que passamos juntos.
    Enquanto morou comigo, no período em que foi casado com mamãe, aproveitei sua presença. Acompanhava-me nas bancas para comprar revistas em quadrinhos da Marvel e DC Comics. Sabia o quanto eu era viciado em figurinhas. Certo dia, deixou-me vários envelopes do álbum Robocop em cima da cama e, quando cheguei em casa, foi aquela surpresa maravilhosa. Procurei-o para agradecer e o encontrei na banca da quadra, chupando um picolé de limão. Nada mais meu pai do que parar o dia e chupar um picolé de limão.
  Quando pré-adolescente, cheguei várias vezes cabisbaixo por causa de brigas na quadra. Bati algumas vezes, mas apanhei mais. Não era pancada de verdade, era humilhação por cascudos e safanões. Teve um dia em que uns três ou quatro meninos me encurralaram. Cheguei em casa chorando. Pronto, pai desceu e pagou geral, ralhou com os moleques e disse: "Se for no mano-a-mano, um contra um, pode vir que ele aguenta", e eu morrendo de medo que qualquer um deles topasse o desafiio...
  Eu tinha dez anos quando meus pais se separaram. Ele passou um período longo perdido, enlouquecido pelo fácil acesso a mulheres - 35 anos, médico bem-sucedido, atraente e galanteador - esqueceu um pouco dos filhos. Buscava meu irmão e eu aos sábados, com roteiro certo: Park Shopping, com direito a Divertilândia e Mc Donald´s.
  Ao observar simpatia, desinibição e expansividade, comecei a valorizar essas características. Imitava apertos de mão, abraços, brincadeiras, trejeitos... Aprendi a encher a bola das pessoas, chamar todos de irmão, cortejar as mulheres mesmo sem qualquer intenção e ser um pouco sem noção. Funcionou apesar da timidez. Tive mais amigos e conhecidos, tornei-me mais gaiato e sedutor e aprendi a levar a vida com mais leveza.
  Casou novamente, teve outra filha, lançou-se na carreira política, separou, enfrentou processos judiciários, envelheceu. Acompanhei esses acontecimentos a distância. Nessa época, ficávamos com ele aos domingos, por ocasião dos almoços fartos e longos da família de sua nova esposa. Não quis encampar o projeto de candidatar-se a Deputado Distrital, ferindo-o profundamente. Ficamos meses sem se falar, ele não foi à colação de grau da UnB. Aos poucos retornamos à normalidade.
  Cresci, comecei a construir minha vida autônoma. Almoçávamos de quinze em quinze dias, às vezes sozinhos, às vezes com irmã, irmão, namorada. Gostava mesmo era de ficar sozinho com ele. Quando faltava assunto, ficava um silêncio gostoso, mas acho que ele não curtia. Não lhe agradavam papos filosóficos e políticos - ele era Roriz; eu, Cristovam.
  Com a vida corrida, os encontros se tornaram mais esparsos. Quando doente, logo o chamava - adulto correndo atrás do pediatra. Houve ocasiões em que queria ficar enfermo, só para ter os cuidados dele. Em festividades sempre estávamos lá, mas havia muita gente, não tinha mais o silêncio gostoso.
  Quando tive a crise psiquiátrica, a única pessoa para quem abri a porta foi ele. Viu-me nu, com vassoura à mão, a casa inundada, destruída. Acalmou-me, deu um cigarro, tentou me por para dormir.Com coragem, internou-me. Com mais coragem, foi me buscar da clínica. Seus olhos marejados não escondiam a tristeza de ver-me naquela situação. Cogito ter sido o golpe tão profundo que ele não se recuperou ainda. Aconteceu, eu - seu orgulho -  desabara.
  Nos últimos dois anos, recolheu-se. Vejo-o pouco, sempre com ar animado e descontraído não convincente. Sei que seu interior revolve-se. Notícias chegam, mas não me agradam. Quero ver novamente fulgir luz daquelas mãos que já me salvaram, que curaram crianças e famílias. Força e bondade não faltam, talvez sejam necessários direcionamento e serenidade. Espero ansiosamente pela reaproximação. Aguardo o momento de poder cuidar, apoiar e amar esse velho pai.


7- Farmácia (11.7.2014)

 "Cheguei a casa, pendurei o jaleco.
Ostentava estampas da Farmácia - serpente enrolada em cálice - e da UnB. 
No alvo tecido, destacava-se nódoa de sangue vermelho escuro.
Até então, não reparara o respingo infectado - estive na ala de tuberculose.
A mancha não saía, bem como as memórias daquele dia no Hospital Universitário.
Jovem rapaz soropositivo fitou-me arregalado, estremecido de dor.
Senhor debilitado estendeu-me a mão, mas eu estava atrasado para aula de francês.
Impregnaram-me olhares e necessidades dos enfermos. 
Era incapaz de dissipar a mácula da roupa e as imagens da mente."
(Novembro de 2008)


  Coloquei os pés na Universidade de Brasília em março de 2001. Aprovado pelo vestibular para o curso de Ciências Farmacêuticas, tive prazer ao receber o trote tradicional: esconderam os sapatos, pintaram-nos inteiros, vestiram os calouros com caixas de medicamentos e solicitaram 15 reais, a serem obtidos mediante pedidos aos passantes.
  Em meio à brincadeira, começavam os primeiros contatos entre os recém-aprovados. Mendigávamos em grupo pela UnB ou pela via L2. Pedi dinheiro na rua e pude constatar o tamanho do constrangimento perante as reações frias da maioria das pessoas. Até aquele momento, parecia fácil chamar pedintes de aproveitadores e preguiçosos.
  Estava empolgado pelos estudos, mais ainda pela vida universitária. Caminhava pelo campus só pelo prazer de admirá-lo - faculdade de saúde (FS), ala sul do minhocão, udfinha, ceubinho, ala norte, biblioteca, reitoria. No primeiro semestre, almoçava no restaurante universitário por r$ 2,50. A comida não era boa, mas tinha a vantagem de fazer parte daquele ambiente. Ficando lá na hora do almoço tinha oportunidade de conhecer garotas, saber de festas, tirar xérox e estudar.
  Morava na 203 norte, bem perto da FS, para onde ia em bicicleta Giant verde-musgo, com quatro de cromo, comprada arduamente no ano anterior. A ida era moleza, mas a volta nem tanto, por conta da íngreme subida.
 Aos poucos, conhecia os colegas de curso, seja em salas de aula seja pelos corredores. De 25 aprovados, havia 4 homens. O entrosamento não foi fácil e, entre alguns, simplesmente não aconteceu. Os veteranos eram simpáticos e chamavam para festividades. Por haver mais mulheres, senti-me à vontade, gostava da presença e do cuidado. Com os rapazes, mantive distância, só me abri aos poucos e mesmo assim com desconfiança.
  Estudei o fluxograma do curso. Ao ler as matérias, não consegui imaginar do que se tratava. O primeiro semestre foi light. Fiquei encantado com anatomia, desenhava o sistema ósseo, muscular, nervoso, circulatório. Só não gostei do cheiro de formol da parte prática. Ficava incomodado, com salivação excessiva. O fato de que a monitoria era depois do almoço piorava o quadro.
  Rapazes eram relaxados; garotas, dedicadas. Estas caminhavam com livros de anatomia do Sobbota embaixo do braço, aqueles permaneciam no Centro Acadêmico jogando pebolim. Fiz questão de inscrever-me em poucas disciplinas, queria a sexta-feira de manhã livre, para poder ir a baladas quinta à noite. Havia então o imperdível forró do Arena.
  Cansei de ir a festas nesse período. Cada canto da UnB me traz uma recordação. Por um lado, aproveitei muito a vida de solteiro. Por outro, passei muitos anos da faculdade namorando, do que não me arrependo. Com ficantes, amigos ou namoradas, deu para curtir, viajar e estudar. Acampávamos em chácaras e em cidades desconhecidas. Bebíamos, fumávamos e usávamos maconha regularmente. Era a época de sermos aventureiros e descuidados, experimentar a vida like a toilet paper: long and useful.
  Fascinou-me a primeira metade de Farmácia, cujo enfoque foi a área de saúde. Fui monitor de Histologia e ingressei no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) em Biologia Molecular. Passei dois anos de jaleco no subsolo do laboratório, com pipeta à mão, analisando pellets, gel de agarose, reações de enzimas, cadeias de DNA e RNA. Defendi o artigo proposto, contudo, tive a certeza de que não gostaria de trabalhar em pesquisa.
  Ao mesmo tempo, consegui vaga em Projeto de Extensão do Departamento de Biologia. O objetivo era trazer a universidade para o contexto de escolas primárias das cidades-satélites do Distrito Federal. Minha função era dar aulas de fitoterapia junto com a colega bióloga e compor horto medicinal no próprio colégio. Adorei o projeto. Estive em educandários da rede pública e colaborei com cultivo de plantas terapêuticas:  Capim Cideira, Babosa, Carqueja, Boldo, Transagem, Barbatimão, Espinheira-Santa, Calêndula, Melissa, Camomila, entre outras. Estudei botânica aplicada à farmácia, farmacognosia e cursos especializados em fitoterapia do Cerrado, na Chapada dos Veadeiros. Ministrei curso de fitoterapia, com a mesma colega bióloga, e conseguimos dinheiro suficiente para comprarmos mais livros. Plantas medicinais e trabalho social me empolgavam.
  Passadas as matérias introdutórias, teve lugar a química pesada. Não posso dizer que tive dificuldades, mas exigiu esforço que até então não tinha feito. Aprendi a estudar na marra, porém consegui tirar MS em quase todas. Houve momento em que parei de entender, o raciocínio não alcançava a abstração complexa de íons, elétrons, nêutrons e prótons. Só queria me livrar dos professores e decorei - sem aprender - grande parte do que caía nas provas. Descobri que tampouco gostaria de trabalhar com química.
  Farmácia propriamente dita só começou lá pelo 6º semestre. Estudávamos para dupla habilitação, clínica e industrial. Começaram farmacologia 1 e 2, farmacodinâmica, farmacocinética, farmacologia molecular, bem como as matérias de indústria, produção, modelagem, equipamentos. Interessava-me pela área clínica e hospitalar, mas antipatizava com a industrial.
  Durante minha graduação, o curso de Farmácia e a profissão de farmacêutico viviam crise. Com o advento da indústria e laboratórios, o trabalho perdera importância. Desenvolveu-se o conceito de atenção farmacêutica, que significava a relação direta farmacêutico-paciente. No campo da saúde, médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos se digladiam para obter competências. É complicado o farmacêutico, que tem mediador - medicamento - conseguir manter o espaço nessa disputa.
  Já suspeitava de que não iria desempenhar a profissão. Entretanto, estava no 8º semestre e não valia desistir. Faltava a realização dos estágios. Primeiro, estagiei na drogaria Rosário do final da asa norte e em farmácia de manipulação, um mês e meio em cada. Não me agradou, achei os processos repetitivos e pouco criativos.
   O segundo teve palco no Hospital Universitário. Foram seis meses visitando ambulatórios e internações, aprendendo a compor, preparar e administrar medicamentos. Não suportei o sofrimento do ambiente hospitalar. Chegava a casa passando mal. A precariedade do HUB me desestimulava. Certa vez, o elevador quebrou e enfermeiros transportavam paciente em maca pelas escadas. Confinado na sala de manipulação, o farmacêutico dependia de medicamentos - muitas vezes escassos - para exercer seu ofício.
  No terceiro estágio, exerci a função de profissional formado, em seção de garantia da qualidade na indústria ELOFAR, localizada em Florianópolis. Passei quatro meses de decepção e angústia. Trabalhei de touca, luvas, máscara e uniforme no pequeno estabelecimento no Estreito, bairro do continente. Morei na Lagoa da Conceição, longe do trabalho, por atravessar a ponte Hercílio Luz. Passava no laboratório 8h45 por dia, para não trabalhar aos sábados. Através de vitrais observava o céu aberto de Floripa.
  Descia e subia para verificar funcionamento de equipamentos, comportamento de funcionários e expedição dos lotes. Havia falhas de toda natureza. ELOFAR era antiga e desatualizada, incapaz de competir com os gigantes da indústria farmacêutica. Fiz a tese de fim de curso sobre centrífugas. Não consigo me lembrar de uma linha.
  Quando voltei para Brasília, estava desalentado. Não me encaixei em nenhuma das áreas de atuação. A maior parte dos colegas se encontrou na profissão, mas não foram poucos os que se viram perdidos. A ambição despertou em mim: queria prestígio, carreira e dinheiro. A solução que encontrei foi estudar para concursos públicos, inicialmente voltados para área de saúde. Logo depois, expandi os estudos e passei a explorar outras possibilidades.
  Nunca exerci a profissão de farmacêutico, porém agradeço profundamente o curso de Farmácia. Fiz matérias excelentes. Aprendi a estudar o que gosto e o que não gosto. Conquistei o diploma que me permitiu adentrar outras carreiras. Aproveitei ao máximo a UnB, fiz amigos, conheci outras realidades. Farreei para o resto da vida. Tive força e coragem para admitir o fim de um ciclo e recomeçar outro. Poderei, ainda, no futuro, resgatar minha formação, na área da fitoterapia e de saúde público
  Não quero me comparar a Carlos Drummond de Andrade. Ao ler sua biografia soube que também foi farmacêutico que nunca exerceu a profissão. Trabalhou como jornalista, foi servidor do Ministério da Cultura e um dos maiores poetas em língua portuguesa. Sinto-me eternamente inspirado.

8- Águas de outubro (21.7.2014)

"    O tempo nublado das tardes de outubro prenunciava águas. Observou a chuva através da janela. Seguia com o olhar cada pingo que escorria nos vidros. Entreabriu a esquadria e deixou as gotas atingirem-lhe o rosto. Acalmou-se com o tilintar contínuo.
      Cada gotícula era uma alma, unidade autônoma de vida. Solidificou, condensou, sublimou, liquefez-se e precipitou. Foi às nuvens e caiu por terra. Poderia ter cruzado o Atlântico, ter sido parte da célula de dinossauro, orvalho da manhã e até lágrima salgada de Fernando Pessoa - continuaria gota d´alma.
      Submerso, foi preenchido por sentimentos. Experimentou as reminiscências do cheiro de terra e de árvores molhadas . Viveu emoções antigas no corpo físico. Teve o cansaço da saudade. Concentrou o pensamento naquela gota - gelo, oceano, dinossauro, flor, poeta -, levantou os olhos e admirou novamente a chuva que lhe parecia eterna"
(Brasília, 2014)

"Marrom dá lugar ao verde - Brasília refloresce em águas.
A seca se foi de repente, ao relampear do céu carregado.
Fina chuva cai há cinco dias, o horizonte tornou-se cinza.
Guarda-chuvas e paciência no trânsito: Esplanada engarrafada, acidente na altura do Pátio Brasil e alagamento das tesourinhas.
Toldos do Setor Comercial Sul abrigam centenas de pessoas, mal cabem os ombros espremidos.
DF TV: 15º C, humidade 92%, tempo fechado e pancadas ao longo do dia.
(Brasília, outubro de 2011)

  Brasília sofre mudanças climáticas. Até por volta de 2002, chegada a primavera, em setembro, despencavam os céus. Sei disso porque as primeiras chuvas caíam perto do meu aniversário (10/9), três dias antes ou três dias depois. Agora, existe ano em que a seca só termina em novembro. De modo igualmente surpreendente, neste ano houve queda d´água ontem, em meados de julho. As alterações não se restringem à pluviometria, temperatura também tem se modificado: o frio da noite é mais intenso, bem como o calor dos dias. 
  Quando se fala da Capital, as pessoas logo se lembram da secura. Comigo acontece o contrário - minha memória se atém mais à estação chuvosa. Brasília me remete água - Tom Jobim cantou "Águas de março", relativa ao Rio de Janeiro, mas, se fosse brasiliense, talvez escreveria "Águas de outubro". Estou tão acostumado com a seca que não sinto sua presença. A vida segue normal, os dias são invariavelmente lindos; o céu, aberto. Ao caírem as pancadas da metade do segundo semestre, aí sim, começa o diferente.
  Com a chegada da chuva, meu temperamento se transforma. A mudança é nítida e repentina. Torno-me introspectivo e emotivo. Parece que o corpo exige mais descanso. O ritmo das atividades é forçosamente reduzido, compromissos a céu aberto são adiados. Há ocasiões em que é impossível sair de casa, trovoadas, relâmpagos e apagões arrefecem os ânimos.
  A interiorização dessa época me suscitou o diálogo interno e a imaginação. Quando criança, passava horas inventando personagens cowboys, índios, piratas, monstros. Meus preferidos eram GI-Joe (Série Cobra) e playmobils. Nunca gostei muito de Lego. Não brincava de bonecas, mas criava famílias imaginárias: pai, mãe, avós, irmãos, eu e minha esposa. Idealizava o grupamento perfeito, em que todos eram amigos e felizes. Em frente da televisão, entretinha-me com TV Colosso, Chaves, He-man, Cavalo de Fogo, Thundercats, Jaspion, Changeman, Jiban. Aborrecia-me Caverna do Dragão.
  Passei a maioria das férias escolares aqui. Meus pais não tinham o hábito de viajar, muito menos por longo tempo. Trabalhavam demais e se divertiam de menos. A regra entre meus amigos era: "fim de ano vou me embora de Brasília, que é pra eu ver o mar/ mas diz pra mãe lá pro final de fevereiro é quando eu voltar" (Liberdade pra dentro da cabeça, Natiruts). Ficava solitário, talvez seja oriunda dessa época minha capacidade de ficar sozinho. Jogava futebol de botão comigo mesmo.
   No apartamento da 203 norte, dormia, comia, jogava videogame e fitava a chuva através das janelas. Em grupo, vez por outra, quando havia uma trégua, corríamos ao parquinho molhado ou à quadra de basquete, onde tentávamos jogar entre as poças. Inventávamos de brincar de paredão na parede, mas logo éramos repreendidos pelo porteiro. Assim, costumávamos ficar embaixo do bloco sem fazer nada, conversando sobre o vento.
  Pré-adolescente, os três meses de chuva eram sinônimo de MTV, em companhia de João Gordo, Cazé, Edgard, Sabrina e Marina Person. Também não perdia seriados da Warner e da Sony, tanto de humor, Friends e Sienfield; quanto de drama, Dawson´s Creek, Party of Five, Felicity. Jogava role-playing game (RPG), principalmente Vampire, Dungeons and Dragons e Shadowrunner. Era viciado em Magic: the Gathering. Reuníamo-nos em casas de amigos, para testar nossos decks e treinar para torneios de final-de-semana realizados pela Eclipse, localizada na 311 norte.
  Não sem motivo, a partir de outubro aumentava a carga de leitura. Restrito ao apartamento, inicialmente, lia revista da Turma da Mônica, Marvel, DC Comics, manuais de jogos de tabuleiro (p.e: Jogo da Vida, Detetive, Hero´s Quest), livros de RPG. Depois, debrucei-me sobre Machado de Assis, Tolkien, James Clavell, Noah Gordon, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, etc. Acabou ampliando meu conhecimento e cultura, o que naturalmente foi bom para meu futuro.
  Aos poucos, comecei a interessar-me por bebida e pegação. Frequentávamos todo tipo de ambiente noturno: Iate Clube, Minas, Planeta Brasilis, Arena, Bandouche. As baladas eram vazias em dias de chuva. Íamos de festa em festa, boate em boate, procurando local animado, mas não encontrávamos - costumávamos entrar em alguma festinha meia-boca, só para não perder viagem.
  A dois, o clima chuvoso inspira vinho tinto, chocolate, namoro, sexo, confissões e intimidade. Encontros sociais escasseavam, crescia o convívio mútuo. Nada era melhor do que matar aula de manhã e acordar tranquilamente ao som da chuva e das buzinas de automóveis, tomar um café preto, ou capputtino, fumar um ou dois cigarros, e depois cair na cama novamente. À tarde, o frescor do dia fechado era ideal para escutar Cazuza ou Cranberries.
  Não me importo de chegar molhado nos lugares. Casacos, camisas, bermudas, tênis, bonés, tudo pode ter sido encharcado, menos as meias. Irrita-me ter as meias molhadas, ainda mais quando fico longo tempo sem remover o calçado. Meus dedinhos ficam enrugados e dormentes. Não foram raras as vezes que, em locais inapropriados, fiquei descalço, com as meias arremessadas ao lado.
  Houve vezes em que fui pego pela chuva voltando para casa a pé. Nada melhor do que isso. Era uma maravilha: relaxava e curtia a água. Empolgado, fazia movimentos com as mãos, corria um pouco, parava, fazia penteados diferentes. Cantava "What a glorious fellin´/ I´m happy again" (Singing in the Rain, Gene Kelly). Chegava a casa, dependurava as roupas molhadas no tanque e depois entrava em banho quente, vestia roupas limpas, estirava-me na cama e ficava olhando para cima.
  No fim-de-ano, a cidade se torna um imenso guarda-chuvas, quase uma extensão do braço do candango. Considero triste ver as principais vias tornarem-se guerras de umbrellas, cada um com o seu, disputando espaço com o próximo. Parece cena de filme destinada a demonstrar a competitividade e a solidão da metrópole. Nos estabelecimentos, há cestos para deixar os guarda-chuvas, os quais são frequentemente esquecidos.
  Como toda grande cidade, o trânsito torna-se um caos. Após as primeiras chuvas, o asfalto não está adaptado e cria fina película de água; Em qualquer freada o carro derrapa pela pista. O DETRAN-DF colocou no ar campanha pública informativa com a canção "Sabão, sabão, choveu virou sabão", ao longo da qual fusquinhas amarelos de brinquedo se chocavam com facilidade.  Acidentes abundam e o tráfego fica interrompido nas vias principais. Vale a pena chegar mais cedo e sair mais tarde dos compromissos, para evitar horários de pico.
  A amenidade do clima é agradável. Trata-se de convite à indolência, que permite renovar as energias além da medida, fazendo as noites parecerem curtas demais. Aproveitava a escuridão úmida das madrugadas para escrever, mas principalmente pintar. Preparava telas, tintas, aguarás, pigmentos, pincéis e me trancava na biblioteca. Focava-me no trabalho e muitas vezes quando dava por mim o dia amanhecia.
    Assim é Brasília, meio-chuva, meio-seca. Duas fases complementares e necessárias. Outubro traz a fertilidade. Amadurecem mangas, abacates, cagaitas, jatobás. Arbustos secos e tortos tornam-se frondosos e floridos. Canela-de-ema ostenta linda flor cor-de-rosa. Árvores enormes, como a cabeluda da 406 norte, são reabastecidas para o ano inteiro. O Lago Paranoá atinge níveis normais de enchimento, sobreviverá à próxima seca.
  Águas de outubro são parte do meu itinerário e biorritmo. Permitem a variação semestral de sentimentos e desejos. Resta contemplar, afinal, está chovendo. Devagarzinho, quando menos se espera, chega março, é hora da seca novamente. Nesse ciclo, junto com a cidade, foram desenvolvidas duas estações do meu ser, corpo, alma e personalidade.

9- Mãe (22.7.2014)

" Renovou a vida em si, a mãe. Reconheceu em um corpo a plenitude de dois seres.
O verbo torna-se plural: tomamos água, comemos, vamos, voltamos.


Encarregar-se, mãe, de portar a vida em nascimento, frágil e dependente de seu ventre, de seus cuidados e de sua tutela.
Nos nove meses definitivos de nossa jornada, estimular as primeiras comunicações silenciosas, reensinar-nos a linguagem da fala.
Trazer para si a responsabilidade de amamentar, tornar vivo e forte, de nutrir com carinho e devoção, sendo instrumento da carne fazendo carne, da vida fazendo vida."

"Costurada a rede à atenção de meus olhos
buscadas as felpas,
arrematados os desfiados,
aos furos emprestada distração
- fiei-a com meu peso
recomeça o balanço da rede velha - embalada, embalada,
parece ranger como o pigarro de um avô que não tem mais nome
Começa a dizer que samba-lelê está doente, para.
Dorme, pequeno, escuta o ranger,
com os ouvidos colados aos sonhos
atente à respiração de quem balança você"

"Dorme minha pequena 
não vale a pena despertar 
Eu vou sair 
Por aí afora
Atrás da aurora 
Mais serena"
(Acalanto para Helena, Chico Buarque)

"Dorme, meu filho, dorme no meu peito.
Sonha com a felicidade. Velo eu."
(Trecho de Minha Mãe, Vinícius de Moraes)

10 - Primícias do prazer (23.7.2014)


"I´ve got sunshine on a cloudy day
When it´s cold outside, I´ve got the month of May.
I guess you would say
What can me feel this way?

My girl, my girl, my girl
Talkin'bout my girl
My girl"
(My girl, Temptations)

"E com a família toda embebedada
Foi mais fácil arrumar bimbada,
Prum recém adolescente.
(...)
Foi num puteiro em João Pessoa
Descobri que a vida é boa
Foi minha primeira vez"
(Puteiro em João Pessoa, Raimundos)

  Em minha infância, houve episódios de desejo homem-mulher, mas não os considero sexuais. Beijei escondido minha prima algumas vezes por volta dos seis anos. Em canto escondido do gramado do colégio Carmen Sallés, uma mocinha deixava os meninos verem, com curiosidade inocente, sua vagina, e até mesmo acariciá-la, mediante fichas de lanche da cantina. 
  Lá pelos nove, dez anos, comecei a querer aproximar-me de garotas. Era romântico e assexuado. Imaginava andar de mãos dadas e fazer um par bonito. Cheguei a presentear com flores e bombons, no pátio do recreio, uma das garotas mais bonitas da escola, para tê-la como namoradinha de olhares. Não sabia direito o que era, mas meu coração acelerava ao lado delas, mesmo nas brincadeiras infantis. Junto com outros, classificava-as segundo beleza e simpatia. 
  As apresentadoras de programas infantis eram os ícones de beleza, Xuxa, Angélica e Mara Maravilha, na minha época. Para um garoto que chegava à puberdade, não havia ingenuidade no comportamento delas. Apelavam à sensualidade crescente dos "baixinhos", o que considero a causa do seu sucesso. Novelas, desenhos, filmes complementavam meu imaginário do que seria ideal. Pretensioso, só me interessava por garotas belas e populares.
  Não sou alto, mas encorpado e com boa apresentação. Pareço ser bem mais jovem que a minha real idade, o que, na pré-adolescência, foi problema. Meu desenvolvimento físico foi tardio. Enquanto meus amigos tinham suas primeiras aventuras amorosas, eu permanecia de escanteio. Escutava-os com atenção e eles se orgulhavam de seus feitos.
  Era exageradamente platônico e sonhador. Histórias de amor juvenil me emocionavam. Mesmo as sugestões amorosas dos filmes da Disney eram capazes de me deixar nas nuvens. Devaneava em busca do par ideal, com o qual me casaria e teria filhos. Chorei o desfecho trágico de "Meu Primeiro Amor". Queria "My Girl" também.
  Aos poucos, fui engordando. As meninas me davam atenção, achavam-me simpático e engraçado, porém não me davam a menor bola. Nem pensava em transar, contudo, sentia-me atrasado e desprestigiado em matéria de amor. Fui dar meu primeiro beijo na boca aos onze anos, em brincadeira de pêra-uva-maçã-salada mista, algo do tipo resposta ou prenda. A alegria foi enorme, cheguei emocionado em casa. Não queria nunca mais lavar a boca.
  Nunca tive atração pelo sexo masculino. Isso não impedia eu achar bonito corpos de homens, os músculos e as definições. Em TV e revistas, os rapazes eram bonitos e magros. Queria ser igual, mas sabia que estava distante. Desejava ter físico atraente de modo natural, ainda não cogitava esforçar-me para tal. Não tenho problemas em considerar belos outros homens. Mais tarde, tentava imitar o estilo de alguns hollywoodianos, como Jhonny Deep. 
  A atração sexual propriamente dita data aproximadamente aos doze anos. O marco foi a descoberta da masturbação. E que descoberta, foi tremenda fonte de prazer. Arrepiava imaginando cada hora uma das minhas conhecidas. Certa vez, fiquei adoecido e tive que repousar. Sem fazer nada, comecei a me tocar... e não parei mais, foram inúmeras vezes, até quando, exausto, dormi satisfeito. Na época não havia internet, então dependíamos da boa vontade de tios ou amigos mais velhos para nos comprar revistas de mulher pelada. Preferia as de mulheres bonitas nuas às de conteúdo mais pesado. Masturbávamos entre amigos, como no filme "Y tu mamá también". 
  Consciente do prazer erótico, veio a frustração. Todos começavam a ficar, a se pegar, a transar e eu permanecia estacionado. Nas festas, observava os casais se beijando e sentia tristeza. Tinha amigas, porém não tinha a menor chance com elas. 
  Até os quatorze, estudei na escola Logosófica, onde havia poucos alunos e mais complacência comigo. Já no Leonardo da Vinci, no ensino médio, a sensação só piorou. Todos tiveram namorada, ou, na pior das hipóteses, um rolo. As meninas encorpavam e se tornavam mais e mais sensuais e atraentes, entretanto, não conseguia me aproximar, por causa da timidez, vergonha e principalmente da minha aparência. 
  Despertava-me tesão só em olhá-las. Na van que me levava ao colégio, nas cadeiras escolares, ao caminhar, tudo me sugeria sexo. Escolhia cuidadosamente o lugar onde sentar para saber se alguma optaria pelo meu lado. Apaixonei-me por uma garota, virou fixação, só pensava nela. Ela não era linda no primeiro ano e eu achava que tinha chance. 
  Dos quinze para os dezesseis, se não tomasse uma rápida decisão, passaria o resto da vida frustrado. Decidi emagrecer, inspirado pelo objeto de minha paixão. Corria na esteira pensando nela. Levantava pesos pensando nela. Em seis meses, consegui perder trinta quilos, indo de 96 kg para 66kg. Fiquei tão magro que meus amigos chamavam-me aidético. Minha vaidade apareceu e a partir daí procurei ficar cada vez mais forte e belo.
  A mulher que me deu ânimo para o emagrecimento virou maravilhosa. Não consegui mantê-la perto da minha amizade intencionada, ela só se aproximava dos garotos lutadores e populares. Fiquei bonito e, assim, outras garotas surgiam. Comecei a ficar em festinhas, era procurado por garotas na academia, recebia cantadas na rua. Para minha idade, era inexperiente, mal sabia beijar, excitar o corpo nem pensar e sexo permanecia miragem distante.
  Por conta da falta de desenvoltura, vergonha e principalmente orgulho - abominava levar foras-, perdi muitas oportunidades. Lamentei muitas dessas chances passadas, podia ter aproveitado mais a vida se tivesse ousado mais. Fui ganhando confiança, mas carecia de experiência. Tinha medo de não conseguir, de embaraçar-me com as garotas com quem ficava. Além disso, não tinha nenhum lugar para onde pudesse levá-las, com mais intimidade.
  O tempo foi passando e eu continuava virgem. Virgindade causando virgindade - era virgem porque não tinha experiência e não tinha experiência porque era virgem. Foi aí que tomei a decisão que muitos amigos já haviam tomado: procurar uma garota de programa. Ela teria local próprio, paciência com a minha falta de jeito, e maturidade para me ensinar os primeiras lições. 
  Aconteceu no meu aniversário de dezoito anos, na 315 norte, a "quadra das putas". Meus amigos ratearam o valor, setenta reais, se não me engano. Biritei um pouco antes do acontecimento. Escolhemos pouco, foi a que estava disponível, não era bonita mas tinha o corpo adequado. No quartinho de sua quitinete, transei pela primeira vez. Não foi bom, não consegui chegar, embora tenha ficado quase uma hora com ela. Com medo de que acontecesse qualquer coisa, meu amigo permanecia na sala, assistindo a TV e, depois, brincou a respeito da demora.
  Foi importante esse rito de passagem. A partir daquele momento, ganhei segurança para outras conquistas. Um mês depois, comecei a namorar e, assim, entrei em nova etapa de minha vida sexual e amorosa.