quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Seleção de poemas sobre Brasília


Affonso Romano de Sant´anna
Como ela surge ninguém sabe. Sua gênese noturna, sua forma aguda e modos de sair do chão redonda fina em gomos de erosão, marmórea, límpida, onírica, sua forma bem lavada em barras de suor e aço em combustão.

Afonso Arinos (Buriti, 1898)
Velha palmeira solitária, testemunha sobrevivente do drama da conquista (...)
Talvez passassem junto de ti, há dois séculos, as primeiras bandeiras invasoras (...)
Se algum dia a civilização ganhar essa paragem longínqua, talvez uma grande cidade se levante na campina externa que te serve de soco, velho buriti perdido.

Carlos Drummond de Andrade
Ao observar o rascunho da cidade apresentado pelo colega do Ministério da Cultura Lúcio Costa:

"Peguei da folha e tive entre os dedos nada menos que a cidade de Brasília, inexistente e completa, como um germe contém e resume a vida de um homem, uma árvore, uma civilização. Era um rabisco e pulsava."

Clarice Lispector
Brasília é construída na linha do horizonte. – Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas de digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. – Quando morri,um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. – Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. – Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. – Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. – Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira. – Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. – Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. É por isso que em Brasília não há onde esbarrar. Os brasiliários vestiam-se de ouro branco. A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos. Não havia em nome de que morrer. Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa. – Esperei pela noite, noite veio, percebi com horror que era inútil: onde eu estivesse, eu seria vista. O que me apavora é: é vista por quem? – Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construções com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete nos jornais. – Aqui eu tenho medo. – Este grande silêncio visual que eu amo. Também a minha insônia teria criado esta paz do nunca. Também eu, como eles dois que são monges, meditaria nesse deserto. Onde não há lugar para as tentações. Mas vejo ao longe urubus sobrevoando. O que estará morrendo meu Deus? – Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. – É uma praia sem mar. – Mamãe, está bonito ver você de pé com esse capote branco voando (É que morri, meu filho). – Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria pra onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. Prenderam-me na liberdade. Mas liberdade é só que se conquista. Quando me dão, estão me mandando ser livre. – Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. – Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez. – Pois como eu ia dizendo, Flash Gordon... – Se tirasse meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. – Cadê as girafas de Brasília? – Certa crispação minha, certos silêncios, fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte. – É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la.


Flávio Venturini ("Céu de Brasília")
A cidade acalmou logo depois das dez
Nas janelas a fria luz da televisão divertindo as famílias
Saio pela noite andando nas tuas
Lá vou eu pelo ar asas de avião
Me esquecendo da solidão da cidade grande
Do mundo dos homens num voo maluco
Que eu vou inventando e voo até ver nascer
O mato, o sol da manhã, as folhas, os rios, o azul
Beleza bonita de ver nada existe como o azul
Sem manchas do céu do Planalto Central
E o horizonte imenso aberto sugerindo mil direções
E eu nem quero saber se foi bebedeira ou lucidez



Florianita Campos (Psicose sustentável)

No Cerrado psicótico
todo rio é bipolar
e o Mato fica, sem recato,
em franca mania.

Na seca: o Rio deprimido
sofre fazendo areião
esconde-se das cores do Ipê
da Eritrina, da Sibipiruna

Nas águas: o Rio atravessa

a todos, inundando tudo
E o Mato, sem perder a pose,
derrama-se em verdes

Nicolas Behr (L2 noves fora)
Naquela noite ela estava
Mais dabelhutrês
Do que nunca
Toda Eixosa
Cheia de L2
Vai ser Superquadra
Assim lá em casa.


Paulo Leminsky
claro calar
sobre uma cidade
sem ruínas
Em Brasília admirei
Não a niemeyer lei,
admirei a vida das pessoas
penetrando nos esquemas,
tinta sangue no mata borrão,
vermelho gente
entre pedra e pedra
pela terra a dentro
Em Brasília, admirei
Admirei o pequeno restaurante
Oculto,
Criminoso por estar fora
Da quadra permitida
Sim, Brasília
Admirei o tempo
Que já cobre de anos
Tuas impecáveis matemáticas
Sim, Brasília,
O erro sim, não a lei
Muito me admiraste,
Muito te admirei


Sylvia Plath
Will they occur,
these people with torso of steel
Winged elbows and eyeholes

Awaiting masses
Of cloud to give them expression,
These super-people! -
And my baby a nail Driven, driven in.
He shrieks in his grease.

Bones nosing for distance
And I, nearly extinct,
His three teeth cunning

Themselves on my thumb - 
And the star,
The old story

In the lane I meet sheep and wagons,
Red earth, motherly blood,
O You who eat

People like light rays leave
This one
Mirror safe, unredeemed
By the dove´s annihilation
The glory,


the power, the glory.

Tom Jobim e Vinícius de Moraes (trecho de Sinfonia da Alvorada)
"E ao crepúsculo, findo o labor do dia, as rudes mãos vazias de trabalho e os olhos cheios de horizontes que não têm fim, partem os trabalhadores para o descanso, na saudade de seus lares tão distantes e de suas mulheres tão ausentes. O canto com que entristecem ainda mais o sol-das-almas a morrer nas antigas solidões parece chamar as companheiras que se deixaram ficar para trás, à espera de melhores dias; que se deixaram ficar na moldura de uma porta, onde devem permanecer ainda, as mãos cheias de amor e os olhos cheios de horizontes que não têm fim."

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Onde as almas repousam

Caminhava o viajante
Caminhava por entre as estradas
Encarava a erma jornada
Com aparência rota e errante

Seguia concentrado
O seu passo compassado
Passo a passo
Passo a passo

Em pleno meio-dia
Com o sol no lombo e na testa
Foi avistado ao longe
Por uns olhos da cancela

Olhos que saíam da janela
Que não resistiram e indagaram
o viajante

Desculpe, meu caro,
Atrapalhar o seu itinerário
Mas posso saber qual é o destino
desse peregrino solitário?

O viajante caminhando
respondeu para os olhos da janela
- sem esperança que resposta houvesse -
Respondeu como uma prece

Pretendi dedicar minha vida
ando à procura de um lugar
o qual não sei onde fica
muito menos como chegar

Quero chegar aonde exista calma
Quero chegar aonde as almas repousam
Sem qualquer pretensão
No espaço que por certo existe
entre o sim e o não

Caro viajante amigo,
muitos procuraram em vão
No caminho não há abrigo
só tortura e solidão

Do caminho não tenho placa,
referência ou pista.
Vá caminhando pela frente
que o sol já está bem rente

E os dias passaram
passo a passo
passo a passo
deixando pra trás o cansaço

Sentindo uma leve brisa
que o refrescou
O viajante se pegou
com um sorriso no rosto

Caminhava em direção ao mar
Ouvindo seu murmúrio constante
Esperando encontrar um lugar
Bom para fisgar um peixe
e seguro para se recostar

Sentado à beira da ressaca
Escutou uma estranha fala
de uma estrela-do-mar
Ele disse ao viajante

Não sou estrela-do-mar
não sou biscoito, sou pepino
Todos me confundem
com meus familiares marinhos

Pepino, talvez possa me dar ajuda
Eu venho de muito longe
Atrás de uma longa busca
Quem sabe tu que vives no mar
Algum caminho é capaz de me dar

O que procuras, caro companheiro?
Acharei em minha sabedoria
qualquer coisa que aluda
um pista da sua busca

Olho sentado nesta pedra
esse distante horizonte
de azul-céu e azul-mar
onde vai dar meu olhar
Não quero nem um nem outro
Quero a ausência
Quero chegar aonde exista calma
e as almas repousam

Estranho ambulante,
não adianta pegar o barco
E para além-mar remar
Onde as almas repousam
não é no alto mar
Devem ser num lugar estranho
Não aqui no meu lar

E passavam os dias,
passo a passo
passo a passo
Viu paisagens, viu pássaros,
entoou canções
Brincou com borboletas
E até, por certo tempo, esqueceu sua jornada
Encontrou um dia na caçada 
uma série de aldeões

Perguntando sobre o paradeiro
do objetivo de sua vida
o caminho verdadeiro
o alvo de sua sina

O lugar onde o certo e o errado se eclipsam
Onde não existe nada
Só o lugar onde exista calma
O lugar onde as almas repousam

Os aldeões lhe responderam
com uma pressa moderada
que em sua aldeia havia um senhor
que esteve nessa alçada
Mas agora com eles vivia
E na aldeia fizera morada

O viajante encantou-se 
com tal notícia inusitada
Um ser que procura o lugar
onde exista nada
onde as almas repousam

Chegando à aldeia falada
Estranhou outros humanos
Conviver com pessoas
nunca foi parte dos seus planos

Correu à tenda do senhor
com quem via uma ligação,
uma ambição em comum

Perguntou, logo da entrada:
Senhor, o que fazes aqui?
Desistiu de sua jornada?
Abandonou conhecer o local
onde as almas repousam
onde existe o nada

Muita calma viajante,
sua viagem fora extenuante
Venha e coma um fubá de milho,
com esse humilde senhor, meu filho

Desculpe, prezado amigo,
não somos companheiros de jornada
eu procuro o local onde a lava congela
e a neve jorra
Eu procuro o local onde as almas repousam
e existe o nada

Pois, meu amigo,
o final dessa estrada
não é um evento final,
e sim a própria estrada,
que traça cada sinal
cada marca do seu corpo
é onde existe o nada
e onde sua alma repousa

Não é mais do que o caminho
os caminhos se traçam
sua vida é onde o mal beija o bem
onde o certo e o errado se entrelaçam

Sua mente é onde pode existir o céu junto ao mar
Sua mente não existe - existe o nada -
ali é onde sua alma repousa